Marcel Camargo 15 de outubro de 2017

“O mundo ficou mais externo e eu fui obrigado a ampliar meu campo de visão além do meu próprio umbigo, das minhas vontades e necessidades, que diminuíam em razão dessa urgência em amá-lo com uma intensidade que extrapolava as dimensões do que eu achava ser possível.”

Você foi concebido com muito amor e aguardado ansiosamente – e esta foi a única coisa que pude planejar em relação a sua vida: eu quis você. Depois disso, seu ritmo é que ditava a ordem nos meus dias, controlando os meus horários de sono, de comida, de televisão, meu orçamento, sendo que até meu humor passou a variar em razão de sua presença e de seu sorriso.

Eu achava que iria ter de dividir minha esposa com você, mas estava errado: eu tinha mesmo é que barganhar uma ínfima fração do tempo dela, que era 100% seu – até hoje, por sinal. E então a vida começou a ampliar seu alcance, pois o sentido das coisas não dependia mais somente de mim e sim do que em você me preenchia, representava, inteirava. O mundo ficou mais externo e eu fui obrigado a ampliar meu campo de visão além do meu próprio umbigo, das minhas vontades e necessidades, que diminuíam em razão dessa urgência em amá-lo com uma intensidade que extrapolava as dimensões do que eu achava ser possível.

E fomos nos conhecendo aos poucos, olhando-nos, acomodando nossos corpos até achar a posição mais confortável, no balanço de ninar e nas massagens para aplacar as cólicas – como doíam em mim esses malditos gases! Percebi, perplexo, que as piores dores não necessariamente estão em nosso corpo; os pesares maiores de nossas vidas são aqueles que doem nos filhos. Porque não pude nunca mais ser feliz por completo sem a sua felicidade; não pude mais dormir em paz enquanto não ouvia o seu “boa noite”; não me concentrava em nada direito se você não estivesse bem. Eu não controlei foi mais nada a partir de sua chegada.

Na verdade, a gente se multiplica com a paternidade, pois eu tenho que prestar atenção em você, em mim mesmo, sem deixar de lado, ainda, os cuidados com sua mãe. Preciso administrar esse caleidoscópio emocional aqui dentro, dividindo-me em vários eus, atentando para não me perder de mim nessa jornada, pois anular-me seria a ruína de tudo o que construí até agora. Sou seu exemplo e, embora incorra em muitas falhas, não posso me furtar a balizar minhas atitudes pela ética e pela dignidade, porque é isso o que você me cobra a todo momento, ao externar sua rebeldia, raiva e insatisfação.

Sendo pai, tive que aprender sobretudo a tolerar e a entender que o outro é uma pessoa com vontades, desejos e sonhos próprios e que eu poderia no máximo orientar, opinar e amparar, sem determinar nada de acordo com o que eu queria. Entendi que minhas verdades são só minhas e que aquilo que me faz feliz não tem nada a ver com a verdade alheia. Traçar detalhadamente o caminho do filho é inútil, pois ele acaba fazendo suas próprias escolhas e delineando seus desejos e anseios, apenas esperando nosso olhar de aprovação e orgulho. E eu me orgulho tanto do que você vem se tornando, filho – será que enxergará isso algum dia?

Por isso mesmo, creio que uma das maiores pretensões dos pais é pensar que ensinarão tudo aos filhos, numa via de mão única; quanta ingenuidade. Você me ensina muito mais do que qualquer disciplina que eu tenha estudado em minha vida, filho, porque você é meu livro didático mais precioso, minha bíblia diária, é a prova viva de que Deus existe e olha por nós. Suas amizades me forçam a me desfazer de preconceitos tolos – aqueles amigos que eu jamais teria você os traz para casa e acabo tendo altos papos com eles -; seus ídolos musicais me mostram novas formas de enxergar o mundo – meus anos de piano clássico sucumbem à veracidade nua crua do RAP que vem do seu quarto -; seu descompromisso aparente com o futuro me remete ao quanto deixei de viver, planejando inutilmente os amanhãs que não viriam daquele jeito que eu, em vão, determinara.

E, por mais que eu tente sonhar e planejar o seu futuro, meu filho, ele cabe a você somente, mas tudo bem, eu confio em suas escolhas e estarei aqui para ser seu consolo e sua força para recomeçar, sempre que a vida lhe disser não – o que será inevitável. No mais, desejo, com todas as minhas forças e esperanças, que seja tolerante o suficiente para não julgar quem pensa diferente; sábio o suficiente para não se achar dono da verdade; humilde o suficiente para saber pedir perdão; ético o suficiente para não tomar o que não é seu; gente o suficiente para saber o valor de uma vida humana; digno o suficiente para respeitar a sua morada; crente o suficiente para não usar sua fé em detrimento do outro; bom o suficiente para não invejar; gentil o suficiente para fazer feliz a quem amar; corajoso o suficiente para assumir suas escolhas, a despeito do quanto isso possa lhe ser doloroso. Te amo!

Obs: O autor é graduado em Letras e Mestre em “História, Filosofia e Educação” pela Unicamp/SP, atua como Supervisor de Ensino e como Professor Universitário e de Educação Básica.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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