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“O poder é como uma dama, se precisa dizer que é, já não é”
(Lady Margareth Tatcher)
Muitos(as) de nós nos lembramos de Margareth Tatcher, ex-primeira ministra do Reino Unido, já falecida, campeã do neoliberalismo e do desmonte do Estado em favor dos grandes interesses econômicos privados e multinacionais. Sua memória, por isso, é má lembrança para todos os pobres do mundo. Mas a frase sobre o poder não deixa de ser magistral.
O grande teólogo luterano, de origem alemã, Paul Tillich formulou uma verdade que tem ajudado muita gente a refletir e até a reavaliar rígidas posições do passado. O conteúdo de sua afirmação é que a Igreja cristã só chega a sua completude quando possui “substância católica” e “princípio protestante”.
A “substância católica”, como nosso grande Richard Hooker viu muito bem, é a consciência viva da sacramentalidade da Igreja enquanto Corpo de Cristo, sinal e instrumento de Deus no mundo; a valorização da Tradição como veículo da Revelação na vida do povo de Deus na história; a Criação como lugar originário da Palavra, suporte do mistério da Encarnação. O “princípio protestante” é a centralidade de Cristo na vida cristã; a fé como confiança total em nossa entrega a Deus; a importância central do testemunho das Escrituras; profunda liberdade em relação a todas as estruturas humanas, incluindo a Igreja; daí, a ideia de “reforma permanente”, de acordo com a palavra de Lutero: “Ecclesia reformata, semper reformanda” (A Igreja reformada sempre deve ser reformada) e a reivindicação dos direitos da consciência pessoal.
Quando me lembro, como agora, das afirmações de Tillich, vem-me espontâneo pensar no Anglicanismo e na genialidade da rainha Izabel I que teve a coragem de projetar uma forma de Igreja que fosse tão amplamente católica a ponto de ser capaz de abraçar a corrente protestante, de tal forma que se preservasse a unidade espiritual e política da nação. De fato, a partir dessa preciosa intuição, o que hoje pretende a Comunhão Anglicana é justamente isto, manter-se com “substância católica” e guardar o “princípio protestante”, preciosa herança deixada por Lutero com o movimento da Reforma. É sempre bom lembrar que o nome “Lutero” (Luther, em alemão) vem do grego “Eleutherius” que quer dizer “homem livre”, que adotou para si. Na verdade, trouxe à tona algo que é central no Novo Testamento: “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Permanecei firmes, portanto, e não vos deixeis prender de novo ao jugo da escravidão (…). Vós fostes chamados à liberdade, irmãos. Entretanto que a liberdade não vos sirva de pretexto para a carne, mas, pelo amor, colocai-vos a serviço uns dos outros” (Gl 5, 1 e 13).
Sem dúvida, sempre haverá tensões entre a “substância”, a dimensão sólida do ser, que se formula em categorias como “natureza”, “instituição”, “organização”, e o “movimento da liberdade”, a crítica, o novo, a profecia, o Espírito. Não se trata, porém, de aspectos inconciliáveis, não havendo necessariamente contradição, embora permaneça a tensão dialética que deveria ser fecunda e saudável, se houvesse maturidade humana para sintetizar existencialmente, enquanto pessoa e enquanto grupos, o princípio da liberdade e o princípio da realidade.
Os aspectos institucionais são obviamente necessários, deles depende a estabilidade, quer psíquica, quer política. Não há vida sem forma determinada. Qualquer dinamismo “amorfo”, informe, será sempre autodestrutivo. Vida é movimento, sim, mas busca naturalmente organizar-se, estruturar-se em “organismo”. O segredo da maturidade é justamente manter a fecunda dialética entre base e liderança, movimento e organização. Esta aponta para permanência, estabilidade, enquanto movimento sugere mudança, transformação, crítica, reforma, renovação.
Para que isso aconteça e a vida não se perca na confusão e anarquia e, por outro lado, a organização não se enrijeça e extinga o dinamismo da liberdade que carrega sempre o fermento da crítica e de eventual dissenso, é preciso manter-se em constante vigilância, amadurecer no trato com o poder e, particularmente, quem exerce autoridade não caia na tentação da “autocracia” e no comportamento de “privatizar o poder”, como se fosse sua propriedade, ao imaginar que a posição hierárquica produz, por si mesma, espontaneamente, “sobrenatural” e automática iluminação. Ora, o poder não é propriedade de ninguém, mas dimensão da coletividade enquanto tal, mesmo se, frequentemente, necessita de ser, é óbvio, representado por um colegiado ou por alguma pessoa determinada. Não se pode, porém, esquecer: o que confere poder e legitimidade é o reconhecimento. Por isso, diz Margareth Tatcher: “é como uma dama”, que se reconhece por si mesma, por seu próprio porte, por seu estilo de ser, não “precisa dizer que é”, “impõe-se” por si mesmo, sem alarde ou proclamação.
O poder “real”, verdadeiramente autêntico, é aquele que está carregado de “autoridade”, não tem necessidade de impor-se e afirmar-se. Pois poder é capacidade ou possibilidade de ser, é ser “auctor”, construtor de si mesmo e edificador de outras pessoas. É o que hoje se diz como termo “empoderar”. Ter (seria bem mais correto dizer ser) poder é transbordar capacidade de ser para outras pessoas. Jesus nunca dizia “meu poder te salvou”, mas “tua fé te salvou”, devolvendo à outra pessoa seu papel de sujeito, de “autor” da própria transformação. Ter necessidade de impor, de ordenar, de mandar é fraqueza, imperfeição do poder, incapacidade de influenciar por dinamismo de irradiação criativa. É isto o que distingue radicalmente o que é simples (e frágil) “poder legal” e o que é “poder real”, o que se chama de liderança, capacidade de influenciar, atrair e convencer, “autoridade moral”, esta, sim, o verdadeiro “poder real”. Jesus é radical, quando ensina que quem é realmente primeiro se comporta como último, não hesita em servir e se oferece para dar vida às demais pessoas (cf. Mc 10, 41-45).
Trata-se, é verdade, de difícil equilíbrio. Jesus estava tão consciente disto que chegava a dizer que só faz o “caminho” quem chega a “nascer de novo” (cf. Jo 3, 1-9). Trata-se de reviravolta radical e total na vida da pessoa e dos grupos humanos. É como passar da cegueira a enxergar a estrada, como se vê na instrução final ao grupo de quem o seguia na última viagem a Jerusalém, que o levaria à morte. É a decisiva tensão entre maturidade e imaturidade na vivência do poder. Em toda aquela “viagem” da cegueira à iluminação, a ênfase do Metre é uma só: serviço, entrega da vida, comunhão não é alternativa ao exercício do poder, mas é a única maneira humana e humanizante de exercer o poder (cf. Mc 8, 22-10,52). O Apóstolo São Paulo o percebeu tão claramente que nos fala de “nova criatura” (cf. 2Cor 5, 16-21). Se pretendemos permanecer como já somos, fruto do velho nascimento, não há saída para a superação de nossa imaturidade, seremos sempre inseguros(as) quanto à “posse” do poder. É que, antes de ser uma questão institucional, é uma questão “espiritual”, de transformação profunda de si mesmo(a). Por isso, na primeira carta de São João se diz que se trata de “passar da morte para a vida” pelo amor (não pelo “mando” ou a “imposição”. E acrescenta que amar é sempre estar em Deus, a saber, ninguém chega a amar de verdade, em outras palavra, exercer o poder de maneira madura, sem que já esteja em Deus (cf. 1Jo 3, 11-16). Dizendo de outra maneira: ninguém se torna realmente “pessoa” e chega a reconhecer profundamente a dignidade das outras pessoas, sem amadurecer nesse processo “sobrenatural” que é o amor, ou seja, a partilha do poder entre as pessoas mediante o serviço e a partilha do poder sobre as coisas mediante a divisão dos bens. Exercer poder não é apenas função política ou institucional, antes, é algo bem mais profundo e radical, enquanto exige maturidade humana, segurança psíquica e crescimento espiritual, independentemente de religião ou pertença cultural.
Vê-se que não é fácil Por que é tão difícil? É que não se chega facilmente à segurança de si. Nosso poder nunca é completo, experimentamos também “não poder” E aqui as coisas se complicam. Sentimos insegurança, desconfiança, medo e, por isso, termos necessidade de autoafirmação. Aí está a fonte de nosso autoritarismo. É como se quiséssemos “segurar o brinquedo” da vida (poder), quais crianças ciumentas, para que o irmãozinho não ponha as mãos ou se apodere dos objetos de nosso desejo, sentimo-nos ameaçados(as). Autoritarismo é sempre manifestação de insegurança quanto a nosso poder sobre a vida, as relações, as instituições e as coisas. Não é assim mesmo? Quando vemos, por exemplo, governos porem a polícia nas ruas, não é sinal de insegurança de que as instituições “normais” já não têm capacidade de garantir a ordem? Quando se põem nas ruas as forças armadas com seus tanque de guerra, não é sinal de que o governo teme ser derrubado pelo povo? Na Igreja, nas instituições e nas relações interpessoais não se dá algo análogo? Gestos autoritários, ausência de diálogo, acusações gratuitas ou interpretações arbitrárias de afirmações ou de comportamentos, não são sinais de insegurança quanto à própria autoridade?
Anglicanismo não é Igreja fácil. Aliás, a vida em Cristo não é nada fácil, pois é como “morrer e nascer de novo” (cf. Rm 6). Nossa forma de ser Igreja pretende que sejamos “Igreja do Espírito” e não da letra, da liberdade e não da lei, do serviço e não do mando e da apropriação do poder. É sempre mais fácil desesperar do Evangelho e recair na “carnalidade” da lei; desesperar da liberdade e recair na servidão; desesperar do diálogo e impor a própria vontade por decreto; enfim, desesperar da “comunhão” e da autoridade do povo e impor a própria verdade de indivíduo ou de seu grupo. Tudo isto, resultado da insegurança e do medo de não “ser poder”.
Como se disse acima, na verdade, serviço não é alternativa a poder. Na perspectiva de Jesus, serviço é a única maneira humana e humanizante de “ser poder” e exercê-lo. Com efeito, serviço recíproco é o jeito correto de viver as relações entre as pessoas; partilha é a maneira correta de viver as relações com as coisas enquanto mediação das relações com as pessoas. Na verdade, é sempre a regra de Jesus que está em causa: partilhar o poder, na relação com as pessoas (cf. Mc 10, 32-45); partilhar os bens, na relação com as coisas (cf. Mc 10, 13-31). Viver a comunidade não é outra coisa, é ser em comum e ter em comum, as duas formas básicas de exercer o poder em todos os níveis. É por isso que chegamos a dizer, com ousadia eclesial, que somos “Igreja liderada por bispos e governada pelo povo”. Infelizmente, nem sempre o temos conseguido. Nossos medos e insegurança nos perseguem. Administrar com decretos e ordenanças de mando é sempre mais fácil, impor de cátedra encobre nossa imaturidade, incapacidade de respeitar pontos de vista diferentes e ansiedade que não permite a paciência de aguardar o desenrolar-se de processo mais longos. Tudo isto tem a ver com nossa compreensão e vivência do poder como algo individual, como se fosse “meu”, quando nos afastamos da compreensão do poder como algo a ser exercido de forma comunitária, como “nosso”, partilhado, como Deus sempre faz, ao confiar em nós.
Anglicanismo é pobre tentativa humana de tentar na história imitar a Deus, pela “inclusão” e pela vivência da “unidade na diversidade”. Isto quer dizer que, para além de procedimentos burocráticos e institucionais, deve ser processo espiritual profundo de conversão, de “nascer de novo” para, em Deus, compreender e praticar nosso poder como humilde serviço e partilha, do jeito de Jesus. Para isto, não basta ler a Bíblia, ensinar a Bíblia, pregar a Bíblia, “aprender” a Bíblia. O processo tem de ser muito mais profundo: aprender da Bíblia o jeito de ser de Deus. Aí, sim, a Bíblia pode tornar-se “escola de liberdade”, experiência de transcendência que projeta a pessoa para além de si mesma, a saber, na comunidade, no povo como coletividade. “Igreja liderada por bispos e governada pelo povo”, “bispo sempre em sínodo”. “Syn-hodós” (caminho em conjunto), fazendo caminho em conjunto com seu povo.
Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….
Imagem enviada pelo autor.