Quando morrer, não quero flores em meu caixão.
As flores devem viver. Há nesse costume de encher com flores
os sarcófagos, algo de rito bárbaro, de tradição pagã que condenava
desafortunadas viúvas a seguirem seus maridos ao outro mundo.
Quando eu me for, quero livros em meu caixão.
Pode suceder que haja alguma demora antes que decidam
se serei consignado aos portais do Senhor
ou à antecâmara de Lúcifer
Nesse intervalo, não rezarei. Para isso terei tido já a vida inteira.
Deus é muito sábio e experiente para que se deixe iludir
por orações de última hora.
Em vez disso, aguardarei lendo. Lerei os clássicos, os
poetas, os filósofos, os dramaturgos, as comédias e as tragédias
mas lerei também os jovens autores, os inéditos, os incompreendidos.
Lerei tudo o que não tiver lido e lerei de novo o que já li.
Adiarei quanto puder o meu destino, pedindo para concluir a leitura
de grossos e fundamentais volumes.
Quando, porém, não restar possível qualquer protelação
e for enfim convocado a conhecer o veredito,
ouvirei impassível e tranquilo a decisão.
Tenham minhas parcas virtudes fiado-me a salvação
ou hajam meus muitos pecados comprado-me à vista a perdição,
aceitarei sem tremores a sorte que me couber –
sem fumar, sem chorar, sem cheirar a flores.
Perguntarei apenas: – posso levar meus livros?
Obs: Texto retirado do livro do autor – É Lenta a Palavra Tempo –