Na década de 50, os recursos naturais do município de Itabaiana direcionavam seus habitantes para o trabalho na agricultura. Com a indústria e comércio pouco expressivos, um terço da população economicamente ativa, disponível para exercer atividades produtivas, não encontrava trabalho. Tornou-se habitual, legiões de paus-de-arara partirem de Itabaiana em busca do sonho de São Paulo. A viagem, sozinho ou com a família, não garantia necessariamente uma melhora na qualidade de vida do retirante. Tratava-se de uma aventura na esperança de obter um futuro promissor.

Na metrópole, o número de vagas para mão de obra não qualificada era incontável, restando apenas arregaçar as mangas e trabalhar sem limites. Seu objetivo imediato era o enriquecimento. Poder, prestígio e fama chegariam depois, naturalmente. Julgava ser capaz de executar qualquer tarefa e fazê-la com muita perfeição. Sem curriculum, iniciou suas atividades nos formigueiros humanos da construção civil, contratado para trabalho bruto, árduo e insalubre.

Com salário raquítico, passou a viver nos ermos da cidade grande como um cisco de canto, submetido à progressiva desvalorização e subestimado por grupos proletários em ascensão. Endividado e sem gosto pelas letras, sua relação com o mundo ficou limitada ao ambiente de trabalho. Enfrentou dificuldades variadas que se apresentavam e sentia-se em posição ativa e forte na resolução dos conflitos. Sempre confiante em sua capacidade para alcançar e manter o bem-estar pessoal e familiar.

Entretanto, ao longo de vários meses se deu conta de que a vida em São Paulo o empurrava em direção a um estado de enfermidade social. As incertezas enchiam seus olhos de lágrimas e o peito de saudades pela demorada ausência dos costumes de seu povo. Em sua mente um alvoroço passou a futucar seu juízo, fazendo crescer desejos de retornar, de forma temporária ou definitiva, às suas origens. Começou a planejar ansiosamente o dia de voltar, mas sentia necessidade de esconder a decepção de ter sido malsucedido.

Depois de 12 meses de trabalho, vieram as férias. Em suas mãos estavam a oportunidade e o tempo necessário para voltar à sua terra, matar a saudade e mostrar-se diferente. A população da cidade estava reunida na Praça de Santa Cruz para celebrar o Natal. Um palco com dimensões perfeitas para sua apresentação. Passeou vagarosamente pela praça, para ser notado. Ora caminhava para um lado, ora para outro, em todos os sentidos. Precisava exibir aprimoramento e refinamento, divulgar novas ideias, costumes, gostos e valores, projetando-se como exemplo de aculturado de uma civilização avançada. Unhas pintadas, bem perfumado, óculos escuros, botas de cano curto, calça de listras, casaco de couro sobre camisa de quadro (mesmo na estação escaldante do verão), e na cabeça um chapéu de feltro de abas curtas adornado com uma pena de pavão. Um rádio de pilha na cintura com fone à orelha, uma caneta bem visível no bolso e uma medalha de São Jorge no pescoço completavam o vestuário. Participou de todas as diversões e com sotaque paulista cumprimentou conhecidos e desconhecidos. Andou impecavelmente pelas ruas da cidade, jogou sinuca no bar de Dedé Cachaça e, por último, assistiu à missa do galo.

A predileção estampada nos trajes refletia seus gostos e a influência do contato direto e contínuo com o operariado dos canteiros de obra. A extravagante estética confrontou os costumes locais e promoveu conflitos de opiniões: para uns, os contrastes vinham de berço e de baixa bagagem cultural formal e auto-adquirida, e olhavam-no com carinho e respeito; para outros, aquela arrumação bizarra tornava bem visível o legado com o qual a cidade grande lhe havia condecorado. Apelidado de espantalho urbano, tratavam-no com gracejos e desprezo.

O resultado do sonho de São Paulo foi uma punição que provocou seu deslocamento para um grupo socioeconômico tão baixo, que após alguns anos, em franca decadência, lhe faltava o essencial à vida. Encontrado em estado de penúria, vagando pelas ruas nas madrugadas, foi recolhido e levado para um asilo, onde sobreviveu por pouco tempo. (Aracaju, 31 de março de 2015)

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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