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(Setembro, Mês da Bíblia, 2017: Primeira Carta aos Tessalonicenses)

Assembleia estadual do Cebi-Pi

Introdução

Muita gente de Igreja talvez estranhe o título deste texto. O que tem a ver “Igreja” com o sistema do mundo, a que seria alternativa? Afinal, o sistema lida com questões de ecologia-economia, hoje em dimensão multinacional;  com relações sociais de produção, com relações e estruturas políticas, cada vez mais internacionalizadas e militarizadas; com educação e cultura, sempre mais  condicionadas e comandadas pelas chamadas “mídias eletrônicas” para além das fronteiras de qualquer pátria… Igreja não teria a ver com isso, ela se ocupa de religião. Nela somos iniciados(as) por rituais religiosos, aprendemos doutrinas “espirituais”, somos ensinados(as) a orar e a cuidar de aperfeiçoar nossos comportamentos “morais”, nossos costumes, nossa  honestidade e a “fazer caridade”… É verdade que isso de honestidade hoje está em baixa, a começar de pastores que se tornam sempre mais ricos, gananciosos e até corruptos; e de padres prestigiados  e alegres pelo próprio sucesso  em programas de rádio e TV, “galãs” que cantam e encantam e em quase nada ajudam o povo a perceber o que seja a fé em Jesus. O “mote” atual é o sucesso  empresarial, pois a religião também passou a produto de mercado, e a riqueza é expressão de competência e sucesso, inevitavelmente “sinal de bênção”. Tem gente que se pergunta se a Igreja ainda vai conseguir se alçar do fosso em que está caindo vergonhosamente, e “fosso” parece próximo de “fossa”…É verdade que as pessoas hoje leem mais a Bíblia, mas esta consegue ensinar pouca coisa, pois é tomada apenas como um livro que ensina “religião e bons costumes”. Quem sabe, só pouca gente sintonizaria com o título e só uma minoria aprovaria dizer que Igreja não é religião, mas nova e  revolucionária proposta de vida que viria na contramão dos sistemas deste mundo. Não seria fácil para muita gente compreender se ouvisse a seguinte frase: “A Bíblia é um livro religioso, mas não é um livro de religião”. Fala também de religião, como fala de muitos outros aspectos da vida, sua linguagem, é verdade, é religiosa, mas seu conteúdo é apresentar uma proposta alternativa de vida, quer no âmbito pessoal, quer no âmbito social e internacional. Como estamos longe de profetas e profetisas, de apóstolos e apóstolas, discípulos e discípulas de Jesus de Nazaré! Frequentemente, carregamos conosco uma palavra que já não consegue interpelar a sociedade por ter deixado de ser proclamada como “Palavra de Deus” e não passar de “palavra de homens”…

Um tempo privilegiado

No dia 30 de Setembro, tanto no calendário católico romano quanto no anglicano, celebramos a festa de São Jerônimo, Doutor da Igreja e Mestre nos estudos bíblicos. E preparamo-nos para celebrar esse dia seguindo seu grande exemplo de dedicação aos estudos bíblicos. O povo católico romano e muitos grupos do CEBI dedicam todo o mês a dar especial atenção a meditar a Bíblia.

Sabemos que a Bíblia foi escrita primeiro em Hebraico, desde os tempos antigos do Primeiro Testamento. Após o exílio de parte do povo hebreu em Babilônia, entre os séculos VI e V antes de Cristo, foi-se acentuando a Diáspora, ou seja, a Dispersão dos hebreus por várias partes do mundo, desde o Egito até o Oriente. O império babilônico tinha deixado sua língua como herança, o Aramaico, tanto que era essa a língua materna de Jesus na Palestina, e a Bíblia tem alguns textos em Aramaico.

Com a dominação dos gregos, a partir do imperador Alexandre Magno, a língua grega foi-se espalhando pelo mundo, tanto que até na Palestina, sobretudo no ambiente das cidades, muita gente falava Grego. Também no Egito, particularmente, que tinha sido um reino grego, com capital em Alexandria. Aí havia muitas comunidades judaicas que falavam Grego. Num certo momento, os próprios judeus sentiram necessidade de que a Bíblia fosse traduzida para a língua grega, pois muita gente já não entendia bem o Hebraico, pois já nascera no Estrangeiro. Além disso, a Bíblia em Grego seria precioso instrumento para fazer conhecida a mensagem do Monoteísmo entre os gentios. Assim, aos poucos a Bíblia foi sendo traduzida para o Grego. Entre o século III e II antes de Cristo a tradução estava pronta. Mas em todo canto tem gente conservadora, nem todo o mundo aceitou bem essa novidade, pois a “língua sagrada” da Palavra era o Hebraico (como ainda hoje tem gente que acha que a língua “sagrada” da Igreja é o Latim). Por isso nasceu uma lenda que dizia que 70 sábios decidiram traduzir a Bíblia para o Grego. Cada um fez a sua tradução separadamente e quando se reuniram tiveram a grande surpresa de que todos tinham traduzido do mesmo jeito. Explodiram de admiração e reconheceram que a tradução tinha sido inspirada por Deus. A lenda era uma maneira de vencer a resistência de quem não aceitava a novidade. Como era possível resistir a reconhecer tão grande prodígio? Por isso essa tradução ficou conhecida como a “Tradução dos Setenta”, ou “Septuaginta”, que é 70 em Latim.

Mas, depois da dominação e da grande influência grega, veio o Império Romano e a língua de Roma, o Latim, foi se espalhando pelo mundo. Havia então a Bíblia em Hebraico, em outras línguas antigas do Oriente, como o Siríaco, por exemplo, e em Grego. Só que grandíssima parte do povo já estava falando e se entendendo em Latim. Essa era a língua “vulgar”, isto é, do “vulgo” que quer dizer “povo comum”. O Latim era a língua comum do povo. Por isso, o Papa Dâmaso estimulou São Jerônimo a traduzir a Bíblia para o Latim. Ele viveu entre o século IV e V depois de Cristo, sabia Hebraico, mas foi para a Palestina, Belém, estudou ainda mais com rabinos e se jogou de corpo e alma à tarefa. Por isso a tradução dele tem o apelido de “Vulgata”, ou seja, feita na língua do povo (vulgo) da época, que era o Latim. Hoje já temos a Bíblia traduzida em muitíssimas línguas pelo mundo afora. Ele foi um apóstolo que ajudou a divulgar a Bíblia entre o povo comum, as comunidades daquela época, época já difícil, pois o império romano estava sendo invadido por outros povos que chegavam do Norte da Europa. Ia começar o tempo que chamamos de “Idade Média”.

 Este é um tempo privilegiado. Por todo um mês vamos honrar a memória de São Jerônimo, imitando o que ele fez: dedicando tempo para, em comunidade, meditar e estudar a Bíblia. Ele também fazia o mesmo. Não só trabalhava na tradução da Bíblia, mas orava e meditava os textos bíblicos junto com pessoas, mulheres e homens, que viviam em comunidade com ele, em Belém. Bem perto do lugar onde tinha nascido, Jesus renascia pela meditação de Sua Palavra. Agora somos nós que fazemos o mesmo.

A Primeira Carta aos Tessalonicenses

Este ano vamos nos debruçar sobre a Primeira Carta aos Tessalonicenses. Para mim é sempre uma renovada emoção abrir essa Carta aos Tessalonicenses. Aí temos nas mãos o primeiro escrito da Igreja. Foi com esse documento que o povo cristão  começou a desenhar por escrito o seu próprio retrato. Entramos em contacto com nossos primeiros irmãos e irmãs, lá pelo ano 51 depois de Cristo, mais ou menos quase 20 anos após a morte de Jesus. Os evangelhos só iriam aparecer lá pelos anos 70, ou seja, vinte e poucos anos depois.

O Apóstolo São Paulo escreve em conjunto com sua equipe de trabalho missionário, Silvano e Timóteo. De Timóteo, ele diz que é “nosso irmão e ministro de Deus na pregação do Evangelho de Cristo” (3, 2). Silvano deve ser o mesmo Silas de que se fala em Atos 17, com Paulo também ele fora fundador da comunidade. Em meio a dificuldades e perseguição, os apóstolos tiveram de fugir, acusados de serem “os que andam revolucionando o mundo inteiro; agora estão também aqui e Jasão os recebe em sua casa. Ora, todos eles agem contra os decretos de César, afirmando que há outro rei, Jesus”. Foi preciso pagar fiança para não serem presos, e durante a noite fugiram”. A breve narração de Atos sugere que o anúncio do Evangelho tinha sido percebido imediatamente como algo que “revoluciona o mundo”, pois dá a entender que há uma soberania alternativa, a de Jesus. A maneira de escrever a carta parece confirmar isto.

Exercício de leitura do texto

Um exercício interessante e que pode ser proveitoso é dar bem atenção ao texto. Em geral, quando olhamos uma obra de arte, de escultura ou de pintura, por exemplo, paramos para observar a imagem, o desenho, as proporções, o volume, o “movimento” que sugere; no caso de pintura, tem ainda, além do desenho, o jogo das cores, o contraste entre luz e sombra, a relação entre figuras etc. Sentimos necessidade de parar e observar com atenção a forma da obra para então daí extrair sua mensagem. Quando lemos um texto, como é feito de palavras, vamos imediatamente aos conceitos, às possíveis ideias, sem parar para observar com cuidado o jogo literário, a construção artesanal ou artística da obra. Um texto é feito de palavras, de jogo entre as palavras, de repetições ou não, de alusões, de ênfase, de imagens e comparações, de conexões, contrastes, articulações, correspondências, e tudo isso forma uma estrutura de conjunto que deve ser percebida. Frequentemente. nosso intelectualismo não nos deixa perceber que um texto escrito é, como uma escultura ou uma pintura, um objeto construído, um “corpo” que, ao ser olhado e contemplado com atenção, vai aos poucos revelando sua “alma”.

Vamos fazer aqui um breve exercício bem elementar, de atenção ao vocabulário do texto, e verificar como, mediante as palavras empregadas, os autores vão deixando transparecer a realidade vivida e sua maneira de encará-la.

Vocabulário que alude ao sistema do império

“Em Deus Pai e no Senhor Jesus Cristo, a vós graça e paz”: “Senhor” se diz em grego “Kúrios”. Era assim que se designava o imperador, ele era o Senhor de todos os territórios do império e era considerado digno de honra e de obediência universal. A palavra “Senhor”, referida agora a Jesus, aparece muitas vezes (cf.1,1.36.8; 2,15.19; 3,8.11.12.13; 4,1.2.6.15.16.17; 5,2.9.12.23.27.28). O imperador também era tido como o grande pai, pois o império era considerado como uma grande casa, a “oikouméne”, palavra que se forma de “oikos” (casa) e do verbo “méno” (permanecer), ou seja, a casa onde todos os povos submetidos permanecem, sendo o imperador o “paterfamilias” (pai de família), o grande protetor, que a todos os povos concede “graça (favor) e paz” (1,1).

A palavra “evangelho” volta algumas vezes no texto (1,4; 2,2.4.8.9; 3,2; 3,6). No império era termo usado para se referir a “boas novas” que eram proclamadas da parte do poder imperial. Por exemplo, sobre o nascimento do imperador Augusto (no tempo de Jesus) se diz que “o nascimento do deus foi motivo de boas novas para o mundo”. O império se autoproclamava o espaço da “paz e segurança” (cf. 5, 3). Só que a “pax romana” se estabelecia nas províncias mediante a vitória militar das legiões armadas e a dominação econômica (latifúndio, escravidão e comércio) e política (governo romano e pagamento dos impostos). Os povos vencidos não tinham força para reagir e, assim, o império ficava “em paz” servindo a Roma.

“Parousía” era a palavra grega para dizer “vinda”, “chegada”, “presença”, literalmente significa “estar junto, “estar perto” (cf. 2,19; 3,13; 4,15; 5,23). Era o termo para designar a visita do imperador ou de alguém muito importante na hierarquia, como um ilustre general, algum governante ou representante do poder. A cidade toda se engalanava, o povo se preparava festivamente para acolher a autoridade que sempre se apresentava sob figura de “protetor” do povo.

Há uma insistência na qualidade da palavra anunciada, que não foi com “intenções enganosas, motivos espúrios e astúcia” (c f. 2, 3), “para agradar homens”, “com adulações” e “secreta ganância” (cf. 2, 4-5), não em busca de “elogio dos homens” (cf. 2, 6). Ao contrário, o Evangelho tinha sido pregado, “não só com palavras, mas com grande eficácia no Espírito Santo” (cf. 1, 5). Várias vezes se diz que não foi “palavra humana, mas Palavra de Deus” (cfr. 2, 13; 4,8.15). Provavelmente essa terminologia aluda a dois aspectos típicos do sistema social romano: ao “patronato” e à presença de mestres e filósofos ambulantes. O patronato era o sistema de clientelismo que permeava a sociedade de alto a baixo. Os ricos protegiam os mais pobres e, assim, se formava toda uma rede de favores, de gratidão e de bajulação. Naturalmente, o imperador era o maior de todos os patronos. Quem caía na sua graça, era privilegiado com cargos públicos, terras e prestígio, quer em Roma, quer nas províncias. Banquetes e reuniões sociais eram ocasiões especiais de demonstrar isso. O sistema ia de alto a baixo. Frequentar a casa de poderosos, ser presença em banquetes, acompanhar pelas ruas pessoas de alto “status”, assentar-se perto delas… tudo isso era objeto de cálculo e de disputa. Senhores tinham em torno de si pessoas às quais tinham concedido a liberdade da escravidão. Os “libertos” eram “livres”, é verdade, mas continuavam perpetuamente no círculo em redor de seus senhores, prestando-lhes favores e devendo-lhes certas obrigações. Muitas pessoas comiam às custas de senhores ou senhoras ricos, de modo que se fala, em textos antigos, que já de manhã os “clientes” se postavam à porta dos ricos para o peditório do dia…  Com essa imensa rede de clientelismo, pode-se imaginar o ínfimo grau de liberdade de que gozavam as pessoas. O prestígio vinha de se sentir apadrinhado por um senhor poderoso, algo como vemos entre nós nos círculos de políticos e ricos empresários. Um típico sistema de “alienação”, pois as pessoas definem sua identidade pela relação exterior com outrem, é o rico ou poderoso quem lhes confere “identidade” e “respeitabilidade social”. É claro que as motivações secretas, embora amplamente compartilhadas, eram “motivos espúrios e astúcia”, “agrado e adulação”, “secreta ganância” e “busca de elogio”…

Aliada a esse sistema socialmente perverso, deve-se ver a presença de filósofos, “profetas”, adivinhos e mestres, além de poetas, ou seja, o que o Apóstolo designa como “argumentador deste século” que ensina “a louca sabedoria deste mundo” (cf. 1Cor 1, 20-21). Ele os caracteriza como o que hoje designamos a função de ideólogos do sistema, os que dizem palavras para agradar os ouvidos dos que dominam na sociedade e convencer os fracos. Frequentemente, hospedavam-se em casas de poderosos e usufruíam de seus favores, a saber, estavam perfeitamente integrados na rede do clientelismo e da bajulação.

Evidentemente, em íntima relação com a ideologia do sistema, estava o culto aos ídolos, uma vez que deuses e deusas, ontem como hoje, são a suprema legitimação do sistema de convivência social fundado na opressão, enquanto “o Deus vivo e verdadeiro” nos abre o horizonte da libertação, tão radical que inclui até a ressurreição, libertação até da morte (cf. 1, 9-10). Abandonar os ídolos é como começar a participar de um Reino alternativo e de sua glória (cf. 2, 12). No sistema dos ídolos é normal não haver santidade, mas paixões desordenadas, luxúria que se manifesta, particularmente, no terreno sexual e do casamento. Aí não há mútuo respeito, mas, ao contrário, uns ferem e lesam os outros. Provavelmente, temos aqui alusão às orgias sexuais e bebedeiras típicas dos cultos dionisíacos; à prostituição e ao comércio de prostitutas (cf. 4,3); à embriaguez (cf. 5, 7). O que é correto, na verdade, não é “agradar” o sistema, diríamos, mas “agradar a Deus” (cf. 4, 1-8). Além disso, o que confere honra é a nova condição fraternal que possibilita autonomia aos olhos dos de fora (cf. 4, 9-12).

As pessoas imaginam que “idolatria” seja adorar imagens. Ora, trata-se de algo muito mais profundo. Adorar ídolos é, na verdade, “adorar a obra das próprias mãos”, prostrar-nos diante daquilo que nós mesmos(as) produzimos. Em termos psicológicos, o ídolo é “retrato” de nós mesmos(as), o que Freud chamava de “projeção”. Projetamo-nos em nossas obras e, em seguida, adoramos nossa própria imagem. Idolatria é narcisismo, encanto consigo mesmo(a). É nossa insegurança que leva a sentir-nos seres divinos, dignos de adoração. Por isso a Bíblia proíbe fazer imagens (cf. Dt 5, 8-10). Pois a imagem de Deus foi Ele mesmo quem a fez, é o homem e a mulher em conjunto (cf. Gn 1, 26-27). Não há mais lugar para outra imagem. A tentação, porém nos persegue. Nossa fragilidade e insegurança nos leva a erigir-nos como seres divinos. Adoramos a nós mesmos(as) e nos impomos à adoração das outras pessoas. Por isso, a idolatria se funda numa mentira, dizem-nos os profetas. Vale a pena ler o livro da Sabedoria a partir do capítulo 13, uma das análises mais profundas da Bíblia sobre a idolatria, assim como Isaías 41, 21-29; 44, 9-20, bem como muitos textos proféticos e salmos. Com os ídolos legitimamos a nós e a nossas obras, por exemplo, o sistema social que construímos. A idolatria é a maneira que inventamos de nos legitimar, é o nível mais alto do que chamamos de “ideologia de legitimação” de nossas obras. Radicalmente, é divinizar o Poder e as Posses, como se nos fizessem superiores aos demais seres humanos.

Qual o lugar que ocupam na sociedade os membros da comunidade? Tessalônica  era  uma cidade importante, fundada pouco depois do ano 300 aC. por um general de Alexandre Magno. Situava-se na encruzilhada de importantes estradas em todas as direções do território do império. Além disso, era cidade portuária. Deste modo, funcionava como centro comercial, para a exploração dos produtos agrícolas e minerais da Macedônia (Grécia). Pode-se supor como devia ser um polo de considerável riqueza na região e, ao mesmo tempo, de escandalosa exploração de mão de obra de escravos e assalariados. Os membros da comunidade situavam-se, com certeza, no estrato mais baixo da sociedade, eram trabalhadores e até escravos. Um sinal disso é a terminologia usada para falar de relações entre eles, terminologia que compreendiam muito bem a partir da experiência e do peso do trabalho: “trabalhos e fadigas”, “trabalho noite e dia” (cf. 2, 2, 9); “atividade”, “esforço”, “trabalho pesado” (cf. 1,3; 5,13); “trabalhar duramente com as mãos” (4,11); “trabalho árduo e fatigante” (cf. 1, 3; 2,9; 3,5); “trabalhar até cansar” (5, 12); “ser operante, produtivo” (cf. 2,2,13). Trata-se de uma comunidade constituída de trabalhadores manuais: pescadores, empregados na construção civil, ou em trabalhos na agricultura e na pecuária, operários, metalúrgicos, artesãos, empregados na construção naval ou em despojos de guerra, e também desempregados e ociosos (vagabundos).  Sabiam muito bem o que diziam os autores da carta, pois o sabiam de sua própria experiência. Não devemos esquecer que, diferentemente do Judaísmo, no mundo greco-romano o trabalho manual não conferia sentimento de dignidade. O ideal humano era não trabalhar com as mãos, mas viver no “ócio”. O homem ideal era o “filósofo”, o intelectual, aquele que não precisava de trabalhar, mas podia “contemplar” e “governar”. O “neg-ócio” (negação do ócio) tinha sido destinado aos escravos, homens inferiores, “embrutecidos” na alma, quase sub-humanos.

Vocabulário que define a nova identidade da “ecclesía” como célula alternativa e de resistência ao sistema econômico, sociopolítico e cultural

Esse povo pobre e humilhado recebia, com o anúncio do Evangelho, uma nova identidade, Paulo costumava dizer “a cidadania do Evangelho” (cf. Fl 1,27). Essa gente que era tida e até se sentia a si mesma como “vil e desprezada” (cf. 1Cor 26-31), agora se sentia levantada do abatimento por novos vínculos de família. Seu pai era o próprio Deus (cf. 1, 1.3) e o Kúrios (Senhor) já não é o imperador de Roma, mas Jesus, Filho de Deus, A expressão “Senhor Jesus Cristo” sai pontilhando toda a carta, desde o primeiro versículo, Deus mesmo é o “paterfamilias” e Jesus é o Kúrios que governa a nova comunidade. Os missionários se apresentam como pai e mãe (cf. 2,7-12) que, em nome da Trindade (Pai, Filho e Espírito), criam novos vínculos fraternos, cuja base são “a fé ativa, o esforço do amor e a perseverança da esperança” (cf. 1,3). A palavra “irmãos” ou “irmãos amados” também sai pontilhando toda a carta (cf. p, ex, 1,4; 2,1.14.17; 3,2.7; 4,1; 5,1.12.14.27). Agora, mediante o Evangelho, revela-se sua nova identidade: o amor fraterno, que transforma as pessoas, antes desprezadas, em pessoas honradas, pois, pelo trabalho “com vossas mãos” e por sua nova maneira de viver  em  ajuda fraterna, é possível afirmar-se na sociedade com autonomia, “sem depender de ninguém”. Era possível fugir ao sistema do “patronato” e do “clientelismo” dominado pelos poderosos. O novo sistema era o da “fraternidade”. Em vez de precisar dos “favores” dos poderosos, agora a garantia era a “graça” de Deus, mediante os vínculos fraternos.  O trabalho manual, que era motivo de vergonha e baixa estima, torna-se agora título de honra (cf.4, 9-12). Os próprios missionários, diferentemente dos mestres que não trabalham com as mãos, deram exemplo de “trabalhar noite e dia para não serem pesados a ninguém” (cf. 1,9), para não darem a impressão de querer se aproveitar de sua posição de líderes. O Evangelho que anuncia “paz e segurança” já não vem mais de César, mas de Jesus (cf. 5, 3).

Esse novo sistema de vida que é a fraternidade e a autonomia na comunidade fraterna equivale a “converter-se dos ídolos a Deus, para servirdes o Deus vivo e verdadeiro” (1,9). Nasce, assim, uma nova relação entre quem se converte e os poderes que dominam o sistema deste mundo de trevas (cf. 5, 1-11;  1Cor 2, 1-9; Rm 12, 1-2). Quem agora reconhece Jesus como “Kúrios” (Senhor) já não se submete a nenhum senhorio humano, pois submeter-se a Cristo já é suficiente, uma vez que é acolher de bom grado o poder de Deus ; doutro lado, já não tem pretensões de dominar sobre ninguém, pois reconhece com alegria sua condição de servo e conservo frente a Jesus, o Vivente. Daí, o aparente paradoxo: tornar-se servo de Cristo e de Deus é a suprema libertação frente aos poderes humanos.

A “parousia”, a grande e festiva vinda, ansiosamente aguardada (cf. 1,10), com sentimento de alegria e festa, é a de Jesus (cf. 2, 19; 3,13; 4,15; 5, 23), não a das autoridades do império. Será o “grande Dia” para o qual é preciso se preparar (cf. 5,2.4). Mas Jesus não está simplesmente ausente e sendo esperado não se sabe para quando.  Na verdade, “o Dia” será o momento de sua festiva e gloriosa manifestação, mas, na verdade, já está conosco, pois já “vivemos em união com Ele” e por isso somos “filhos da luz, filhos do dia”. Assim, “Parousia” adquire seu pleno sentido, mais que “vinda”, é “presença” viva e atual, que nos dá nova esperança de viver e nos confere as armas para a luta que temos de enfrentar  (cf. 5, 1-11).

A posição dos missionários não é como a dos escribas e mestres, filósofos e poetas deste mundo, comunicadores da ideologia do sistema do patronato e do clientelismo romano. A palavra que divulgam não é sua, mas é a própria Palavra de Deus que tira os véus e escancara a mentira deste mundo. A expressão “Palavra de Deus” também percorre toda a carta, justamente para substituir “palavra de homem”, hoje diríamos “ideologia”. A “Palavra de Deus” se mostra por sua capacidade de transformar a vida e conceder coragem de andar na contramão do sistema deste mundo (cf. 1,2-10; 2,3-5.13). A escuta da Palavra transforma as pessoas em palavra viva que interpela outras pessoas e forma novas comunidades (cf. 1,7-10; 2,14), de tal forma que as boas notícias (em Grego,“Evangelho”) do testemunho da comunidade, trazidas por Timóteo, funcionaram para Paulo como “comunicação do Evangelho que nos consolou em meio à angústia” (cf. 3, 6-7).

Não é de admirar que essa mensagem, que pretendia criar núcleos de uma sociedade alternativa, tenha sido vista como suspeita e subversiva e os missionários tenham sido perseguidos e obrigados a fugir para salvar a própria vida (cf. At 17). Optar por ser diferente, frente ao sistema de opressão, já é, por si mesmo, “agressão” aos “dominadores deste mundo”, por isso a Igreja, por ser comunidade, por isto mesmo, entra naturalmente em conflito com o sistema do mundo, pois “revela” que outro modelo de vida humana, não alienado, não “debaixo da escravidão da lei” é possível (cf. Mc 10, 28-31;  Ef 6, 10-20). Na carta aos Filipenses, em muitos pontos do texto, o Apóstolo vai depois proclamar a suprema alegria de entregar-se completamente a Cristo (a carta é conhecida como “a carta da alegria”), a ponto de estar disposto a, por Ele e pela causa do Evangelho, dar a própria vida, ao assumir em si mesmo o próprio modelo de Jesus (cf. Fl 2, 1-11).

 Mal a comunidade tinha começado, foi preciso deixá-los à própria sorte, daí a angústia do Apóstolo. Qual não foi sua alegria ao receber de Timóteo as notícias da firmeza na fé e dos progressos  feitos! (cf. 1, 1-2,2; 3, 1-13). O fato, porém, é que tudo isso se deu “no meio de grandes lutas” (2, 2). Os judeus provocaram a primeira reação. De fato, tinham conseguido um especial “status” sociopolítico e jurídico no império: eram considerados “religião lícita”, ou seja, tinham autorização para viver segundo suas próprias leis e viviam tranquilos e acomodados em seu “gueto”. Ao verem chegar os missionários, igualmente identificados como gente do Judaísmo, temeram que isso os prejudicasse, dado o conteúdo “revolucionário” e transformador daquilo que propunham em nome de Jesus (cf. At 17, 6). Na verdade, o que se anunciava não era uma nova maneira de se acomodar às estruturas do império, como era a situação dos judeus, mas algo que significava uma alternativa anunciada aos pobres, na cidade. Paulo vai formular isto claramente depois em sua Carta aos Romanos: “Não vos amoldeis às estruturas do sistema deste mundo” (cf. 12, 1-2). Não admira que se dê a entender que estamos em situação apocalíptica, num momento de grande risco, semelhante a enfrentar perigosa batalha. É momento grave de “destruição” (cf. 5, 3), de perseguição (cf. 2,15), de tribulações (cf. 1,6; 3 3.4). É momento de dores de parto (cf, 5,3), como ser assaltado por ladrão em plena noite (cf, 5,47). Na verdade, o gênero apocalíptico era uma maneira de falar e escrever em situação de extremo perigo, sob a perseguição de poderosos dominadores, como tinha sido no período da resistência dos Macabeus (cf. 1 e 2Mc e Dn) e aconteceria depois na perseguição romana (cf. Apocalipse de João). Escrevia-se para confortar e animar as comunidades na fé e na esperança, e as denúncias eram feitas em linguagem clandestina para que o inimigo não as entendesse. Aqui, em Tessalônica, é nesse clima que a comunidade se acha, julgam os missionários. Enfrentam a batalha escatológica entre o sistema que oprime e  persegue o povo fiel e o Deus vivo revelado em Jesus Cristo. Por isso, o texto nos fala em termos de luta e da necessidade de estarmos revestidos(as) de proteção para enfrentar a guerra (cf. 5, 1-11). O “tentador” (cf. 3,5) ou “Satanás” (o Adversário) (cf. 2, 18) é nomes apocalípticos para designar todos os poderes inimigos, quer sobrenaturais, quer históricos, adversários do Evangelho e de sua proposta para a transformação do sistema deste mundo de trevas (cf. 5, 4-8), conforme a vontade de Deus. É admirável que a alegria seja a moldura da carta toda (cf.1, 6; 3,9 e 5, 16) e a menção do Espírito Santo, infundido nos fiéis (cf. 4, 8), indique como é preciso assimilar interior e profundamente,  os critérios de Deus: eficácia e completa convicção (cf. 1,5), alegria (cf. 1,6), discernimento para perceber os sinais de Deus que as profecias nos indicam (cf. 5,19). Finalmente, é a graça (o favor) de Deus, e não o favor dos poderosos, que tem de  ser o farol do sistema alternativo que é a comunidade (cf. 1, 1; 5, 28).

Conclusão

O texto se refere de vez em quando ao “Evangelho” ou ”Evangelho de Deus” ou “Evangelho de Cristo” (cf. 1,4; 2,2.4.8.9; 3, 2) e outras tantas vezes volta a expressão “Palavra” ou “Palavra de Deus” ou “Palavra do Senhor” (cf. 1,6,8; 2,13; 4,15). É pena que, muitas vezes, se compreenda essa Palavra como sendo um elenco de doutrinas religiosas. Ora, o texto nos indica claramente que se trata de uma revelação profética na qual se denuncia o perverso sistema deste mundo – no caso, o império romano, e se anuncia que é possível uma alternativa que começa pela adesão de fé (na Bíblia, fé é firmeza absoluta, confiança inabalável e fidelidade até o fim) ao Caminho de Jesus, formando-se assim a comunidade de irmãos, na qual tudo se reorganiza, desde o campo da economia até a religião, passando por novas relações sociais e as relações e estruturas políticas. Pela fé, temos um ”Evangelho” alternativo, que não é mais o do imperador. Agora é um anúncio pelo qual se criam as Igrejas que aparecem como uma rede em que cada uma se espelha na outra em vista de alcançar maior fidelidade à proposta de vida Jesus (cf. 2, 14).

A palavra “Igreja” é herança da Bíblia grega, ou dos “Setenta”. Traduz a expressão hebraica “qahal YHWH”, ou seja, “Assembleia de Deus”, ou “Congregação de YHWH”. O Apóstolo adota a expressão, pois para ele a comunidade de Jesus está em continuidade com o povo bíblico, é o “Novo Israel”, a nova Assembleia. Por oportuna coincidência, também nas cidades greco-romanas “ecclesía” é a palavra que designa a assembleia da cidade, o espaço cidadão de decisões. Entretanto, aí só têm vez os homens (“androcracia” ou poder dos machos) e os ricos (plutocracia), o que equivale â “aristocracia” (os “melhores”), é o poder dos “homens de bem”, na prática, os homens de bens. Isto indica que quando São Paulo adota o termo “ecclesía” (Igreja) está bem consciente de que a comunidade cristã é espaço alternativo ao antigo judaísmo e à organização do sistema dominante no império. Não se trata de nova religião, trata-se, sim, de nova proposta de vida em sociedade, onde há igualdade entre judeus e gentios, entre livres e escravos, entre adultos e crianças, entre homens e mulheres, “pois todos vós sois um só em Jesus Cristo” (cf. Gl 3, 28)

Para o Apóstolo, o que se vive nas comunidades é apenas amostra. célula e ensaio do que Deus  está disposto a preparar para toda a humanidade. Espalhar o Evangelho é comunicar aos povos essa “boa notícia”, de acordo com o que propunha o profeta do exílio, discípulo do grande profeta Isaías. Trata-se de anunciar a vitória de Deus que estabelece a soberania de SeuReino mediante a libertação de Seu povo (cf. Is 40, 9-11; 52, 7-12; 61). É o que vemos hoje, claramente, na perspectiva de Papa Francisco. Foi firmado nessa convicção que Paulo montou sua estratégia missionária. Resolveu viajar para difundir essa “boa notícia” no mundo todo, o mundo judaico e o mundo das nações (cf. Rm 1-4). Deu preferência a passar por centros metropolitanos, dos quais tinha a expectativa de que a proposta se difundisse na região circunvizinha. E concebeu o ousado plano de cobrir todo o mundo conhecido, ou pelo menos aquele mundo por onde girava o império; planejou viajar desde a Palestina até a Espanha, a ponta extrema do Ocidente, depois de andar pela Ásia Menor e Grécia (cf. Rm 15, 14-33). Estava certo de que se tratava de algo que transformaria o mundo todo (cf. Rm 8), pois, além do impacto sócio-político, tocava as raízes do ser humano, o que hoje chamaríamos a condição antropológica profunda, disto trata particularmente em Gálatas e Romanos. Seus discípulos chegaram a ir adiante e disseram que se tratava de algo que tinha a ver radicalmente com o cosmos inteiro (cf. Ef 1; Cl 1, 15-20). Paulo e a corrente a que tinha dado origem perceberam profundamente o que estava já presente nas antigas profecias: a PAZ, o “Xalôm” de Deus só se manifestará plenamente se for universal (cf. Ef 2). Se alguém não estivesse convencido de que a proposta paulina é de chamar as pessoas que creem a formar comunidades alternativas ao sistema das sociedades de opressão, seria necessário que relessem o importante texto de Romanos 12, 1-2: “Exorto-vos, portanto, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais vossos corpos (relações quotidianas) como sacrifícío vivo, santo e agradável a Deus: este é vosso culto como deve ser. E não vos amoldeis às estruturas do sistema deste mundo, mas transformai-vos radicalmente, desde vossos sentimentos e pensamentos, a fim de poderdes discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom agradável e perfeito”. Em seguida vêm as recomendações acerca de uma vida guiada pelo amor (cf. Rm 12, 3-21).

NOTA BIBLIOGRÁFICA: Pode ser muito proveitoso estudar com atenção o livro de Joel Antônio FERREIRA, Primeira Epístola aos Tessalonicenses – A Igreja surge como esperança dos oprimidos, do Comentário Bíblico Ecumênico latino-americano, que teve sua primeira edição em 1991 (Editoras Vozes, Metodista e Sinodal)

Também pode ser útil, embora exija mais de quem lê, o livro de Richard A. HORSLEY, Paulo e oImpério – Religião e Poder na Sociedade Imperial Romana, São Paulo, Paulus, 2004

Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….

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