(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio)
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O terror sabia que ali encontraria muita gente.  De inúmeras raças, nacionalidades, proveniências. Gente despreocupada, que vinha de longe para experimentar algo de liberdade, lazer e diversão.  Desejavam justamente, em boa parte, experimentar aquele espírito cosmopolita que a cidade de Barcelona oferece hoje talvez mais do que nenhuma outra.  E de forma diferente de outras capitais como Nova York por exemplo.

Na Península Ibérica, em plena Europa Mediterrânea, a capital da Catalunha tem um raro perfil: combina história, antiguidade e tradição com arte, modernidade, arrojo. Podem ser encontrados em Barcelona tesouros de épocas passadas, como a belíssima igreja de Santa Maria del Mar e também monumentos de artistas dos séculos XIX e XX, como a Sagrada Família de Antoni Gaudi. E igualmente a Vila Olímpica com suas linhas modernas e arrojadas construída na ocasião das Olimpíadas de 1992.

No coração da Catalunha, a cidade de Barcelona, representa a prosperidade espanhola. Desde sempre comerciantes, industriosos e laboriosos, os catalães são responsáveis por uma fatia importante da riqueza espanhola que tem conseguido atravessar a crise europeia.   Além disso, a cidade é Meca do futebol, com o time do Barsa, onde até há pouco jogava o craque Neymar, mas onde ainda se encontra o craque argentino Messi.  O futebol catalão atrai a sensibilidade esportiva do mundo inteiro.

No meio da leveza e do bem-estar, tudo aconteceu.  Foi na Rambla, via de pedestres situada no coração da cidade, onde sempre se aglomera grande quantidade de gente, em boa parte turistas que por ali caminham.  São famílias, jovens, adultos, uma enorme diversidade, prototípica da época em que vivemos – de globalização e relativização de fronteiras e geografia.

A caminhonete terrorista entrou pelo meio da multidão, em ziguezague, procurando atingir o máximo possível de pessoas.  Arrastou em sua trajetória letal desde crianças de três anos até uma senhora idosa de mais de 70.  Separou famílias. Matou e feriu gravemente espanhóis, europeus, e muitos outros de países e continentes mais ou menos distantes.  Era mais um atentado do Estado Islâmico, que tem marcado a vida do mundo inteiro com o medo e a apreensão, a todos sobressaltando com a imprevisibilidade e a violência de seus ataques.

É a segunda vez de um atentado terrorista na Espanha vindo de um grupo radical islâmico.  A primeira foi em 2004, com a explosão de vários trens em Madri e seus arredores. Mas para a Europa não é a segunda vez.  Contam-se já vários atentados na França, na Alemanha, na Inglaterra.  E nos perguntamos apreensivos: quando e onde será o próximo?

 A reação da população local e estrangeira de Barcelona foi semelhante à das outras capitais em alguns aspectos: não permitir que o medo tome conta da vida cotidiana, não se deixar paralisar e seguir com normalidade.  Mas distinguiu-se em um aspecto: a solidariedade não só de catalães e espanhóis, mas também de estrangeiros residentes e visitantes adquiriu proporções além do esperado.

São incontáveis as manifestações de solidariedade que se seguiram ao atentado Em 24 horas chegava a 8000 o número de pessoas que ofereceram acolhida, ajuda, das mais variadas formas.  Desde o momento em que a van riscou a Rambla de sangue e pânico e se deteve forçada pela ativação do air bag sobre o mosaico do artista Joan Miró até o dia de hoje, milhares de pessoas fazem filas para doar sangue ou oferecem suas casas para alojar as famílias dos feridos que vêm de fora.  Há hotéis que disponibilizaram hospedagem gratuita para parentes de vítimas do atentado, motoristas de táxis e vans que transportam pessoas gratuitamente de um lado para o outro, percorrendo hospitais em busca de seres queridos cujo paradeiro é ignorado. Supermercados oferecem alimentos e gêneros de primeira necessidade.

Não se sente na reação da luminosa cidade catalã raiva ou desejo de vingança.  Mas tenacidade em ajudar, proteger a vida ali onde ela se fez mais frágil e vulnerável pelo fanatismo assassino que tem causas tão complexas. Muitos muçulmanos se manifestaram, deixando claro que o Islã não se resume a um grupo radical djihadista.  O Islã é e quer paz e não morte e destruição. E mesmo as famílias dos terroristas sofrem as consequências de seu fundamentalismo que se torna violento e acaba atingindo elas próprias.

O recado dos djihadistas parece claro: na tentativa de islamizar o mundo inteiro, eliminam aqueles que não são islamizados e atacam os locais e ícones simbólicos do estilo de vida ocidental, diferente daquele por eles proposto e idealizado.

O que mais nos intriga, porém, é o fato de tudo isso acontecer em nome de Deus.  O Deus Uno, o Deus Grande, o Único que é clemente e misericordioso.  Em meio à dor e à perplexidade de mais um atentado assustador e inexplicável, nos vemos diante de uma interrogação para a qual não temos resposta.  Até quando?  Por quê? Que sentido tem tudo isso?

Enquanto não se encontram soluções que sejam ao mesmo tempo eficazes e pacíficas e não penalizem inocentes, a melhor atitude é a que o povo de Barcelona e seus amigos encontraram: ser solidários, entrar em comunhão.  Ajudar, prover, proteger e socorrer. Fazer do atingido um irmão, não importa de onde venha, nem para onde vá.  Assim se reafirma a condição humana de todos que foram atingidos, seja perdendo a vida, sendo feridos, traumatizados, ou sofrendo profundamente perdas e danos.  Somos todos um e estamos em comunhão.  Isso é ser imagem daquele que nos criou à sua semelhança.

Atingida e sangrando, a bela Barcelona dá um testemunho ao mundo da fé em que o bem é capaz de vencer a violência e o amor é mais forte do que a morte.

Obs: Maria Clara Bingemer é autora de “Violência e Religião” (Editora PUC-Rio/Edições Loyola), entre outros livros.

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