Rubem Alves - In Memorian 1 de setembro de 2017

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Galinhas são aves difíceis de se fazer poesia com elas. Elas se prestam a metáforas destituídas de qualquer grau de sublimidade. Os amantes se referem à amada como uma rola, ave de curvas lisas e canto suave. Mas jamais a chamariam de “galinha”, por mais linda que a galinha fosse. “Galinhar” é falta de caráter. Acho uma injustiça, mormente em se levando em conta que as pobrezinhas, depois de gastar uma vida inteira botando ovos, são transformadas em canja, sem a menor gratidão.

Felizmente há escritores sensíveis. O Luiz Fernando Veríssimo sugeriu restaurar a dignidade da galinha colocando-a no lugar do coelho de páscoa. Coelho não bota ovo. Quem inventou essa estória de coelho é um mentiroso. Isso sem levar em conta o seu perigo para a educação. Há sempre a possibilidade de alguma criança escrever numa prova que coelho é uma ave.

A Adélia Prado é uma mulher que reconhece a feminilidade da galinha. “As galinhas com susto abrem o bico e param daquele jeito imóvel, as barbelas e as cristas vermelhas, só as artérias palpitando no pescoço. Uma mulher espantada com sexo: mas gostando muito.”

Disse que galinha é uma ave difícil de se fazer poesia com ela. Apresso-me a corrigir o meu equívoco. A elevação da galinha à altura da poesia eu a encontrei no Manoel de Barros que disse que “todas as coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe à distância servem para a poesia.” E acrescenta: “Tudo que explique a lagartixa da esteira e a laminação de sabiás é muito importante para a poesia.” Que é o caso da galinha.

E ontem abri um livro que me foi mandado de presente pelo autor e lá encontrei um poeminha que fala da amizade entre a galinha e o poeta. É que, para o poeta, tudo o que existe é assombroso. Galinhas são assombrosas. Prova disso é que botam ovos, esses objetos impossíveis. Os poetas são mestres dos assombros. “Enquanto o homem passa ligeiro, com os olhos no relógio, com as mãos no telefone, com o pensamento na carteira, uma galinha cisca, tranquilamente, para seus pintinhos. Coitada! Não tem telefone, não tem carteira, ninguém percebe. Ninguém vê. Só o poeta. Que não tem nada para fazer.” O nome do poeta é Aguinaldo Tadeu e o nome do seu livro é De mineiro e louco, com mais um pouco…

É comovente ver uma galinha ciscando a terra para ver se acha algum bichinho para os seus pintinhos e os chamando com a voz característica de galinha choca. E que ninguém se aproxime. Ela desconhece tamanhos. Avança de asas abertas e bico ameaçador. Uma galinha com seus pintinhos é uma encarnação do que se chama “maternagem”.

Será que alguma criança sabe o que é uma “barbela”— palavra que a Adélia usou? Ah! Já ia me esquecendo… Minha mãe não gostava de cachorros. Por isso nunca me foi permitido ter o meu. Que pena! Soubesse ela dos poderes terapêuticos e educacionais de um cãozinho ela não me teria privado desse prazer. Pois lá na minha casa em Minas, ao abrir a janela de madeira pela manhã, encontramos uma caixa de sapato com um pintinho dentro. Ele foi imediatamente adotado e passou a ser parte da família. Com o passar do tempo percebemos que não se tratava de um pintinho mas de uma pintinha que cresceu e virou uma galinha garnizé. Ela foi o meu bichinho de estimação.

Obs:  Ver AUTORIZAÇÃO do Instituto Rubem Alves no item  OBRAS LITERÁRIAS.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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