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(texto de referência para participação em “roda de conversa”)

Se a Reforma Protestante levou a Igreja no Ocidente a dividir-se, a tarefa de consumar a Reforma nos convoca a promover a unidade. Trata-se de “consumar a Reforma”, pois essa por tantas complicadas circunstâncias daquele conturbado período, ficou a meio caminho, pois, na verdade, enrijeceu o mundo católico com a “Contra Reforma” e exasperou o campo protestante, resultando na impossibilidade de dialogar e, assim, produzindo, ao longo do tempo, sempre novas divisões, até hoje.

Busquemos elencar algumas razões que nos devem levar a pensar que é a unidade cristã o que hoje corresponde profundamente a “consumar a Reforma”. Lutero nunca intencionou dividir a Igreja, mas lutar em vista de ela se reformar, assim, embora oficialmente excomungado por Roma, não morreu “luterano”, morreu julgando-se católico. É certo que escreveu páginas veementes contra os “papistas”, mas igualmente contra quem causava divisões no corpo da Igreja.

Temos de estar lembrados(as) de que a Reforma não foi apenas um movimento religioso, mas, na verdade, só a face cultural-religiosa de uma radical mudança de época: passagem da economia do Feudalismo ao Capitalismo; das relações sociais próprias da nobreza às da burguesia; do corporativismo medieval à consciência de “indivíduo”; do complexo mosaico da organização política do Sacro Império Romano Germânico (Cristandade) à formação dos Estados nacionais. Essas mudanças profundas, que já fermentavam desde o século XII, confluíram para criar o que se convencionou chamar de Era Moderna; uma nova sociedade exigia também nova expressão religiosa. De fato, a proclamação de Lutero em favor da “libertas christiani” (liberdade do cristão) já era expressão do direito de “cidadania” na nova ordem burguesa que se configurava. As revoluções norte-americana e francesa só secularizaram a linguagem ao traduzir por “direito de cidadão” (ainda no masculino, sem dúvida).

Depois do acordo sobre a Justificação por Graça mediante a Fé, entre a Federação Luterana Mundial e a Igreja Católica Romana, hoje, graças a Deus, estamos mais conscientes dos equívocos em que a Igreja do Ocidente se enredou. Na verdade, Catolicismo e Protestantismo devem ser encarados como duas dimensões complementares da formulação da fé cristã e não como aspectos necessariamente contraditórios. De fato, a Reforma foi um movimento que pretendia lembrar a Igreja de valores católicos fundamentais que de há tempo andavam esquecidos. Disto ficamos mais conscientes desde o Concílio Vaticano II: a Bíblia como a referência fundamental para reconhecer a revelação histórica de Deus; a centralidade da graça em relação às obras, às devoções e ao mérito; a centralidade de Cristo crucificado e ressuscitado, como único mediador da salvação; a presença do Espírito Santo na vida do povo crente e para além dos aspectos institucionais da Igreja; a justificação por graça mediante a fé, rompendo-se com todo resquício de Pelagianismo; o sacerdócio comum dos(as) crentes; a autonomia da Igreja local, comunidade de pessoas fiéis; os ministérios como serviço ao povo; a crítica ao mundanismo na Igreja…  O grande teólogo luterano Paul Tillich conseguiu sintetizar muito bem: para ser completa, a Igreja cristã tem de ter “substância católica e princípio protestante”. Papa Francisco, antes de ir à Suécia (onde foi recebido por uma Arcebispa luterana), para a abertura das comemorações dos quinhentos anos da Reforma, afirmou em entrevista que a Reforma nos chamara, particularmente, a perceber a centralidade da Bíblia e a reforma como dimensão permanente da Igreja (“Ecclesia reformata, semper reformanda”.

Com a Exegese bíblica e os estudos históricos, hoje sabemos que Jesus não foi o “fundador” (institucional) da Igreja, antes, é dela o permanente “fundamento”. Jesus deflagrou um movimento pelo Reino de Deus (cf. Mc 1, 1-15; Mt 5-7), categoria central na Bíblia (cf. Is 40-66), como nova proposta de vida. Seu desaparecimento levou discípulos e discípulas a ir inventando formas concretas e variadas de levar adiante a tarefa que Jesus havia começado, como vemos claramente nos Atos e nas Cartas dos Apóstolos. A energia para prosseguir vinha da certeza de que não se podia falar de morte para Jesus, sua morte tinha sido seu último e extremo gesto de vida, daí brotava o Seu Espírito de vida, como São João o diz belamente ao falar da Cruz (cf. Jo 19, 25-30). Ora, isto, de fato, tem dado à Igreja a liberdade de criar seus modelos ao longo da história, inspirando-se em modelos humanos de cada época. Assim o tem feito, tomando para si, no início, modelos do Judaísmo (conselhos de anciãos, adotando ou não a circuncisão e a observância da Lei, acolhendo o patriarcalismo, etc); em seguida, o modelo da “ecclesía” greco-romana, ou seja, da “assembleia” da cidade, só que agora igualitária e não androcêntrica (só de homens), plutocrática (só de ricos proprietários de terra e de escravos) e aristocrática (homens da elite); em seguida, o modelo aristocrático, inspirado no Império, foi-se combinando intimamente com o modelo de monarquia, como se conhece desde a Idade Média, particularmente quanto ao episcopado e ao papado; adotou-se também o modelo mais democrático, até combinado com um traço de patriarcalismo, com vigência maior no ambiente das chamadas “comunidades religiosas”, que têm como paradigma originário o “monaquismo”… hoje se luta arduamente em busca de instaurar o modelo das “comunidades eclesiais de base”, comunidades locais, marcadas por igualdade de relações, com fortes lideranças leigas, e articuladas em rede (local, regional, nacional e mundial), ao lado de “movimentos de espiritualidade”, mais ligados a determinados ambientes de vida e até de classe social… o modelo das “comunidades” tende a articular-se com o que hoje se chama de “movimento social”…

Os estudos bíblicos e teológicos, secundados pelas Ciências Sociais, particularmente a Sociologia e a Antropologia da Religião, têm ajudado muito a perceber a distinção fundamental entre Fé e Religião, isto é, podemos ter instituições, crenças e rituais diferentes, em diferentes culturas, e manter-nos em comunhão na mesma fé do Evangelho. Jesus não identificou Sua proposta profética com nenhuma religião determinada, nem nunca convidou ninguém a adotar a religião que Ele mesmo seguia, nem é “fundador” de nenhuma delas.

Os estudos de Exegese e de Teologia Bíblicas apontam no sentido de reconhecermos que a Justiça e a Igualdade humanas estão no centro da proposta profética da mensagem das Escrituras, baste ler qualquer dos profetas bíblicos. Isto significa que a dimensão econômica e sociopolítica é central na vida humana, e por isso na proposta do “Reino”, quer em seu nível comunitário, quer societário, e, por isso, também central na proposta de vida que se encarnou em Jesus de Nazaré e em Sua ação, por isso que é capaz de promover unidade para além do aspecto cultural que é o religioso ou o eclesiástico.

Jesus não veio fundar nenhuma nova religião, pois a religião adquire forma a partir da cultura de cada povo, historicamente. É  o nível mais alto dos valores que guiam cada pessoa e cada povo, “deus” é a legitimação final e suprema, a última instância de motivação, por ele se vive, se mata e se morre. Jesus se sentia enviado por Deus para inaugurar um “movimento” de renovação de Seu povo, que transbordasse até na direção dos gentios, como sonhara a corrente profética inspirada em Isaías (cf. Is 2, 1-5; 49, 1-7). Para isso indicava e propunha, por Sua práxis, um novo caminho de vida, que o Novo Testamento tenta formular de diferentes maneiras: Reino de Deus, Povo de Deus, Xalôm (Bem-Viver), “nova criatura”, nova “assembleia de Deus”, Corpo de Cristo, Vida Eterna… É do ambiente do discipulado de Jesus que surge a Igreja. Esta deve ser instrumento para apontar na direção do projeto universal de Deus para o mundo inteiro, como se vê claramente na estratégia missionária do Apóstolo São Paulo. Ora, o “projeto” universal de Deus é a “nova criação”, como se pode constatar em Romanos, Colossenses Efésios. Não devemos esquecer, Deus não é “fundador” da Igreja, mas Criador do mundo e desesperadamente luta na história, através de pessoas por Ele enviadas, para que este mundo seja espaço de SERVIÇO e de PARTILHA, única maneira de humanizar o PODER, que é o eixo central da vida humana. É isto o que vemos em quase cada página da Bíblia.

Jesus, de fato, retoma esse veio profundo da mensagem bíblica e nos propõe nos evangelhos um ideal de vida que justamente é o Seu próprio: entregar-se, mediante novas relações com as pessoas e com as coisas. Em vez de alimentar o desejo de poder opressor, realizar-se como poder que se percebe nas próprias capacidades, as quais, em comunidade, se tornam empoderamento de todos os membros do grupo ou da sociedade, é o que Jesus entende por serviço. Ao mesmo tempo, já que as coisas são mediações de nossas relações interpessoais, já a partir das relações de produção, é preciso converter-se a possuí-las em comum mediante a partilha. SERVIÇO e PARTILHA são a maneira humanamente autêntica de relacionar-se com as pessoas e de possuir o mundo. Em outras palavras, são a maneira concreta e vital de amar, de vencer o medo em relação às demais pessoas e ao mundo. Jesus o sintetiza em três expressões lapidares: “Quem quiser salvar (guardar para si) sua vida, a perderá; mas quem perder (entregar) sua vida por causa de mim e do Evangelho (da proposta), a salvará” (Mc 8, 35); “não há quem tenha deixado (compartilhado) casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos(as), ou terras… que não receba cem vezes mais”  (Mc 10, 29-30); “quem dentre vós quiser ser grande, seja o vosso servidor, e quem quiser ser o primeiro dentre vós, seja o servo de todos(as)” (Mc 10, 43-44). Em toda a sua caminhada de subida a Jerusalém, na última viagem, só trata deste tema: converter-nos e nos tornarmos capazes de vencer a tentação da opressão sobre as pessoas e da ambição pela posse, raízes antropológicas de todo sistema de dominação e injustiça, sinais de fato de nossa alienação entre nós e na relação com o mundo (cf. Mc 8, 22-10, 52).

De fato, no centro da Bíblia está a grande contradição real entre o Deus vivo e Seu caminho e os ídolos e seus projetos (cf. Mq 6, 6; Sl 135; 146; Sb 13-15). Jesus volta a falar a mesma linguagem no Evangelho (cf. Mc 11, 15-19; 12, 1-44). Ora, na verdade, essa contradição expressa, em linguagem teológica, a contradição central da vida humana, pessoal e coletiva: de um lado, AMOR, mediante o exercício do Poder através do Serviço e da Partilha (a comunitariedade da vida humana), doutro lado, a dominação sobre as pessoas e a apropriação das coisas.

Se nosso foco de referência se estabelece a partir desse nível antropológico mais profundo, então, nós, o povo da Igreja, teremos como alicerce radical de nossa espiritualidade a Graça, que se experimenta no exercício da Liberdade, a qual se dá mediante o Amor que se manifesta pelo Serviço. É que o amor possibilita a “posse de si” justamente enquanto se “é para além de si”. Vence-se a necessidade de “ser para si”. Sim, porque só se dá ou se entrega quem, na verdade, se possui. Com efeito,  “ser para além de si” é a experiência pessoal, comunitária e sociopolítica do processo de humanização. Na Carta aos Gálatas, o Apóstolo aprofunda justamente isto: a Antropologia Bíblica é a antropologia da pessoa que amadurece na capacidade de amar tão radicalmente que chega, finalmente, a nem mais “necessitar” de si mesma, amadurece para a Liberdade (cf. Gl 4-5). Na primeira Carta de São João, temos um texto particularmente profundo que nos esclarece sobre o mesmo tema: a prática do amor é que nos possibilita a experiência de Deus em nós, ou seja, o mesmo que dizer, é no amor que experimentamos em nós o que chamamos de Transcendência, em terminologia teológica, a “inabitação” de Deus (cf. 1Jo 3-5). Este é o núcleo da experiência de “filiação divina”, categoria teológica para formular nossa condição de “pessoa”. Esta espiritualidade, que nos deveria ser comum, por ser o núcleo da vida cristã, dever-se-ia manifestar na ética que abraçamos e, por consequência, na crítica comum e denúncia da moral vigente, esta sempre reflexo dos poderosos e da sociedade de opressão – estaremos abraçando os mesmos valores fundamentais: DIGNIDADE das pessoas, COMUNIDADE, SOLIDARIEDADE com quem mais necessita, luta pela JUSTIÇA e derrubada de estruturas de opressão, CUIDADO ou COMPAIXÃO universal, cujo resultado é o XALÔM, a felicidade ou Bem-Viver. Sobre esses valores éticos estaremos sobre o fundamento comum daquilo que é o centro da vida da Igreja: a Diaconia do Amor Fraterno (vida de comunidade) e a Diaconia do Testemunho (relação com a sociedade).

Percebemos sempre com mais clareza que este é o conteúdo de nossa missão no mundo, enquanto a Religião para nós deve ser só instrumento ou veículo de comunicação, porque todos os povos têm sido religiosos até hoje e todos nos encontramos na referência comum ao Sagrado, ou seja, esta necessidade primária de exprimir a vivência da realidade de forma simbólica, a partir da intuição de que “pra entender tem que se achar que a vida não é só isso que se vê, é um pouco mais, que os olhos não conseguem perceber, as mãos não ousam tocar, e os pés recusam pisar” (Samba da Mangueira, cantado outrora divinamente por Elizeth Cardoso).

Um dos grandes problemas da “religião” é que, além dessa intuição do Mistério da Vida, ela vai progressivamente assumindo rituais, crenças, instituições, tornando-se “sistema” articulado ao sistema social de cada povo, de tal forma que facilmente degenera em “ideologia” legitimadora na medida em que se faz “religião da sociedade” e “religião do poder”. Daí, a ambiguidade da linguagem religiosa, de um lado necessária como veículo de comunicação”, doutro lado a correr sempre o risco de “ideologia” ou “ópio do povo”.

Na medida em que o mundo de hoje se torna de novo paganizado ou poscristão, a proposta do Evangelho já não pode ser mais reivindicada por grupos “especiais” ou “igrejas” no seio da Cristandade, como se deu na Idade Média quando toda a sociedade se dizia cristã e a chamada “vida religiosa” era chamada ao “privilégio” de testemunhar a Cristo mais que os cristãos comuns. Hoje todo o povo cristão é chamado solidariamente a testemunhar o Evangelho e seus valores frente a um mundo que os combate, sobretudo por suas práticas, é tempo de “Evangelho sem glosas”, como dizia São Francisco, ou de “puro Evangelho”, como falava Lutero. É tempo de Ecumenismo como caminho de “consumar a Reforma”.

Quatro frases que nos podem indicar o rumo de nossa práxis:

“A Bíblia é um livro religioso, mas não é um livro de religião” (Pr. Carlos Cunha, presbiteriano, já falecido).

“Continuamos divididos(as) por razões de mortos, enquanto o povo vivo de hoje nos oferece todas as razões para nos unirmos” (Dom Clóvis

 Rodrigues, Bispo Emérito da Igreja Anglicana).

“Quando nós, das Igrejas Cristãs resolvermos assumir realmente as  preocupações de Deus, que são as questões da vida de Seu povo, então, teremos vergonha de nossas divisões, pois veremos que são coisa tão pequenina” (Dom Helder Camara, Eterno Arcebispo de Olinda e Recife).

“A realidade de nosso povo não nos pergunta primeiro por confissões de fé, mas por soluções de fé”(Eu mesmo).

Grandes desafios:

  1. O fenômeno da desagregação nesta crise atual da civilização esfacela o Cristianismo em grupos e “grupelhos” e correntes contraditórias;
  2. Uma corrente considerável que alcança em cheio nosso povo é a “religião de mercado” que, em certos casos, se aproveita da boa fé e da fragilidade do povo, manipula emoções, dinheiro, prestígio e poder político, e se acha bem longe dos princípios e valores da Reforma, além de enfraquecer o povo, pela alienação e a divisão;
  3. A Igreja se acostumara à proximidade com o poder mundano e do Estado, por isso tem muita dificuldade de situar-se no campo da “sociedade civil” e articular-se com o “movimento popular”.

Obs: Palestra proferida no Seminário Oikouméne em Campina Grande – PB, realizado de 7 a 9 de Abril, 2017.

O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….

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