Quando o fato desaparece da cabeça a sensação tida é de morte plena do período não lembrado. É mais ou menos o efeito da anestesia em intervenção cirúrgica, quando o paciente não tem direito nem a sonhar, fechando-se a porta para qualquer tipo de devaneio. A angústia do tempo vivido e não lembrado é profundamente irritante. É o que passei a sentir quando, um dia desse, tentei me lembrar da prova de admissão ao ginásio. Nada vez nada, igual a nada. Não me lembrei da inscrição, nem do dia da prova, se pela manhã, ou pela tarde, em que sala fiquei, quem fez prova comigo na mesma sala, como foi a prova, a professora ou o professor que ficou a tomar conta, o tempo reservado para a prova. Nada. Não me lembro de nada.
Sei que estive uma noite na casa do dr. Bezerra, professor de Português, para saber minha nota. Ele estava sentado, com os pés numa bacia de água, a conversar com o então promotor da Comarca. Morava na Praça da Matriz. Depois, o que me vem à mente é ter ouvido do Serviço de Alto-Falante Popular o resultado, e a nota recebida, salvo engano, 7,1, mesma nota obtida por Bosco.
Assim termina o pequenino estoque de lembranças acerca de minha aprovação nas provas do admissão ao ginásio.
Até aí tudo bem, porque ninguém é obrigado a se lembrar de tudo na vida. Contudo, o ingresso no curso ginasial não era um fato insignificante. Começar o curso ginasial, passar a usar farda, a ruptura com o curso primário, saber que cada matéria teria um professor diferente, período de férias mais dilatado, a inexistência da palmatória, tudo representava uma conquista na vida da gente no começo da década de sessenta do século passado. E, apesar de toda a importância, até mesmo porque não havia ainda em Itabaiana um curso de hierarquia maior que o ginasial, eu, meus amigos, não guardei nada, absolutamente nada, da inscrição à prova do admissão ao ginásio. O vazio que ficou, quase o nada do fato, é isso, justamente isso, que me martela na cabeça, a me perguntar onde me encontrava para não me lembrar de nada, se até cursinho preparatório fiz, com o professor Oliveira, de cujas aulas, em sua residência, na rua da Vitória Velha, no período noturno, me recordo.
Quando chega a vez da inscrição e da prova, a fita se apaga, os fatos se diluem. Onde eu estava, o que fazia, o que me levou, afinal, a não conservar na mente a menor imagem desse curtíssimo período? Lógico que não encontro resposta. Os que fizeram prova comigo, Bosco, Luiz Carlos, Odete, Lusa Mabel, com quem sobre a matéria já conversei, se lembram, a resposta na ponta da língua, e, eu, a manter pasta da memória na qual sempre vou buscar um fato do antanho de ontem, aqui, desembarco no branco completo, as imagens não aparecem, de nada me lembro, e, o pior é que não há chá de cidreira que me coloque na cabeça o que nela não coloquei há cinquenta e quatro anos atrás. Nada a fazer mais, senão admitir, no aspecto, a verdade da minha derrota pela estupenda vitória da desmemória. (25.04.2015)
Obs: Publicado no Correio de Sergipe
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras.