Ainda adolescente, observava atentamente o trabalho do avô e retinha na memória os seus ensinamentos por longo tempo. Sempre com curiosidade aguçada, incorporava novos conhecimentos, aprendia novas técnicas, aprimorava suas habilidades e à medida que o tempo passava, sentia menos interesse por sua alfabetização. Descartou qualquer esforço para conciliar o aprendizado escolar com o trabalho, preferindo tornar-se fogueteiro. Logo cedo passou a fabricar foguetes e várias peças de artifícios até quando o corpo e a alma suportaram. Na Matapoã, a arte de manejar e dominar fogo, ferro e pólvora fluía facilmente de ascendentes para descendentes, assimilada e aperfeiçoada pelos primeiros imigrantes europeus que após travessias demoradas por grandes mares, chegaram até Itabaiana.

Felismino era branco, de cabelos lisos e pretos, entremeados por fios brancos antes do tempo. De estatura alta, tinha conjunto físico de equilibrada harmonia. Era esbelto, com estilo de caminhar elegante. Vestia-se de forma impecável com camisas de cambraia de algodão, calças de linho bem engomadas, sem marcas de dobras, e sapatos brancos. Andava sempre com passos firmes, lentos ou rápidos, ritmo definido pela necessidade de chegar prematuramente ao trabalho ou pela vontade de cair nos braços da mulher amada. No retrato em preto e branco que ainda guardo é possível perceber traços fisionômicos suaves e severos que imprimiam a seu rosto discretas semelhanças com os homens da inteligência nazista.

Ao longo da vida incorporou conhecimentos, princípios e sentimentos que moldaram seu comportamento e suas relações com os seres vivos, e, por aceitar como sagrada a liberdade de expressão, evitava estender discussões divergentes, mesmo mantendo intocáveis suas convicções. As estrelas, as nuvens, a água, o fogo, o voo dos pássaros, as cores das flores, o faro dos cães, a audição dos morcegos e a visão dos falcões despertaram sua fascinação crescente pela natureza. O homem sem dominar o fogo, o ferro e o chumbo jamais sobreviveria ou assumiria a posição de rei dos animais.  As observações atentas e as conclusões lhe trouxeram encantamento mágico e constante pela ciência. Raramente as pessoas aprendem o que não entendem. Sua sabedoria nasceu e cresceu, dia após dia, das muitas leituras de Estampilhas de Sabonetes Eucalol, de frases do Calendário Anual Sagrado Coração de Jesus, da Almanaque do Pensamento, da Enciclopédia do Século XVIII, do livro de Física de Blackwood e de leituras repetidas do livro A Evolução das Espécies.

Maricota, sua legítima esposa, apareceu grávida e durante a gestação ocorreram ameaças de abortamento. Fora aconselhada a não fazer sibiteza ou enxerimento por até doze semanas após o nascimento do bebê. A abstinência demorada leva Felismino a perder o controle sobre seus impulsos libidinais e cometer adultério. O cérebro não sobrepujava o coração e depois da Hora do Brasil, iniciava uma sucessão gradual de movimentos, para tornar-se harmonioso. Bem penteado e perfumado com colônia Marajoara, partia em direção à casa da amante A notícia do envolvimento de Felismino com outra mulher foi um acontecimento chocante para toda a família. Maricota assistia com dor de cotovelo a traição do marido e cada dez minutos de sua ausência parecia-lhe uma eternidade. Fez uma autópsia psicológica e conclui não ser o coração a única coisa que lhe dói. Ser mãe casada é diferente de ser mãe solteira e depois de estar acostumada a ser dependente, sentia medo de ser incapaz de sobreviver independente. O marido fora domado pelo demônio, invadido por espíritos raivosos ou vítima de magia negra, entretanto, sua religiosidade não lhe permite tornar-se uma mulher sensual e boa de cama. Prefere determinar a morte do matrimônio e passar a viver um luto sexual permanente. Assume o cotidiano de muitas mulheres, sofre retração social, dedica mais tempo à casa, lava roupa, passa ferro, prepara cuscuz de milho ralado e demonstra elevada satisfação em rezar várias vezes ao dia e assistir missas aos domingos e dias santificados.

Quando, por ocasião do aniversário de meu avô, visitei-lhe pela última vez, não fora visita de médico, mas, de neto. Afastei algumas cadeiras para chegar mais próximo. Ele estava deitado na cama, recolhido sobre si mesmo, murmurando vez por outra ai ou hum, expressando desconforto aos mínimos esforços. Foi-me possível interpretar o que traduziam os traços de sua face: haviam indícios sutis de dor, angústia, ansiedade e melancolia, no entanto, esforçava-se, até onde fosse possível, para demonstrar alegria e atenção. Eram perceptíveis seu corpo emagrecido, suas mãos trêmulas, a voz fraca e a fala entrecortada pela respiração ruidosa. As meninas dos olhos da cor de leite escureciam o mundo dele.

              Já havia passado mais de um ano do nosso último encontro, mas, fui reconhecido ao pronunciar as primeiras palavras. Agradeceu-me pela presença e por dois volumes da História da Civilização Ocidental de Edward McNall Burns. Das muitas leituras de seus poucos livros, ficou entusiasmado com a teoria do Big Bang expondo a origem do universo. Aprendeu que os seres vivos são feitos de células e sofrem alterações ao longo do tempo para se adaptar às constantes modificações do ambiente, e, nunca mais acreditou no mágico com a varinha na mão a criar tudo. Realmente é mais inteligente aceitar o homem ter vínculo parentesco com o chimpanzé do que com um torrão de barro.

              Conversamos sobre seu rádio, quase do tamanho de uma boleia de caminhoneta, com duas baterias de volumes parecidos com os das malas de viajar para São Paulo, quase sempre sintonizado na Voz do Brasil, no Repórter Esso, na BBC de Londres e na Voz da Alemanha. Recordamos sua preguiçosa, seu tamborete de cortar fumo de rolo, e de seus cigarros enrolados com papel Columbia. Lembrei-lhe de quando me repreendeu por ter utilizado objetos de sua maior estima (tesoura, faca, navalha e canivete, todos da marca Solingen), para fazer bandeirolas. Relembramos seus bons tempos, seu trabalho, seu amor e sua vida.

              Ao despedir-me, por intuição, deixou transparecer que aquele momento não seria repetido e fez um breve desabafo: “o cigarro e o trabalho com pólvora maltrataram minha vida. Preciso partir antes do início da fúria divina. Deus assassinou afogando seus filhos pecadores e depois ameaçou nos matar queimados. Não sabemos o momento exato em que ele vai por em prática sua promessa perversa, mas a palavra de Deus é a verdade. Prefiro morrer de queda, catarro, caganeira ou câncer do que queimado. Quando Deus ordenar ao dragão cuspir fogo sobre a terra, não quero estar por aqui.”

              A sabedoria é quase sempre uma característica de maturidade, mas todos sentem certo grau de tristeza ante a própria morte, principalmente quem jamais foi convencido de vida após o último gemido. Esforçava-se para manter o equilíbrio e a mesma acuidade crítica. Debilitado, lutava para incorporar, sem esboçar insatisfações e sem perder o sorriso meigo, o declínio imposto pelo passar dos anos.

              Algumas semanas depois, todos seus movimentos cessaram. Seu corpo foi sacolejado várias vezes e nada voltou a funcionar. Sua respiração não era percebida, seu coração não pulsava, sua face estava sem sorriso e seus olhos perdiam o brilho. Não houve exibição intensa de luto porque a morte era iminente e inevitável. Meu velho avô, amigo superior a todos os demais, partiu sem ser por mim dividido: ele foi meu único e excepcional pai. Ao longo de sua vida, deixou frases que agregam comportamentos locais a sentimentos universais. De sua lavra merecem reflexão:

  1. Em terra de cego quem tem olho é aleijado;
  2. Quem não tem cão caça como o gato;
  3. O homem vencedor é aquele que mata à maior distância;
  4. O bicho mais parecido com o homem é a mulher;
  5. O homem nasce livre até incorporar as regras dos poderosos;
  6. Vai sobrar de mim o que eu quero deixar;
  7. Os últimos, serão o últimos excedentes;
  8. A paciência nos ensina o momento de falar, de ouvir, de dar e de receber.
  9. É com o último passo que chegamos ao objetivo;
  10. Se um pedreiro constrói um muro em três dias, nove pedreiros constroem em nove dias.

ARACAJU, 04/07/2017

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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