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Ela não pediu uma festa de aniversário, não queria estar nas capas de revistas, muito menos planejou se casar. Na década de 90, sua “mãe”, a socialite carioca Vera Loyola, não concordou com uma vida tão sem glamour para a amada “filha” que atendia pelo nome carinhoso de Pepezinha. Em crise de identidade, ela (a “filha”) apenas desejava ser o que nasceu para ser nesse mundo: uma cachorra.

Após tremenda polêmica causada por fazer uma festa de aniversário para sua cachorra, Vera Loyola foi mais além no ano 2000, anunciando o casamento da sua “filha”, com o “filho” da amiga e vizinha Maria Eliza Resende, o cão Winner. Hoje, incrivelmente tem gente dizendo que Vera é uma mulher sensível, visionária e a maior precursora das festas pets no Brasil.

Sei que não sou o primeiro nem serei o último a comentar sobre o assunto, mas preciso dizer que estou muito preocupado com o tipo de relação que nós humanos estamos tendo com os animais, principalmente os cães. Cresce o número de pets especialistas em aniversário canino, hotel/spa para relaxamento, “salão de cabeleireiro”, “competições de beleza”, sem contar que seus donos não desgrudam dos seus animais e  os levam consigo pelo Brasil ou mundo afora. O ser humano está preferindo a companhia de um animal à de uma pessoa.

Não pretendo aqui discutir a clara relevância dos animais em tratamentos terapêuticos para indivíduos com alguma doença mental/física específica, assim como o belo trabalho de cão guia para os deficientes visuais, ou o cão farejador para o trabalho da polícia, sem contar como pode ser positivo para a maioria das pessoas ter esse animal para cuidar, brincar e desenvolver afeto por eles.

É claro que alguém pode dizer que são práticas apenas de gente “bacana” que não tem mais onde enfiar dinheiro, mas penso que essa problemática não é apenas de uma classe social específica. Carregamos hoje uma mistura de descrença total no ser humano com a intolerância exagerada de nos frustrarmos.

Por que estamos escolhendo os cachorros para nos relacionar e ser nosso maior objeto de amor? Por que quando estamos carentes optamos por comprar um animal a procurar qualquer tipo de pessoa?

Uma primeira hipótese que levanto é que, quando passamos por traumas sérios na vida, principalmente gerados por aquelas pessoas mais íntimas e que menos esperávamos que nos causariam tamanha dor, corremos o risco de fazer e aplicar para nossa história a famosa e doentia generalização.

Achamos que seremos traídos, violentados, abandonados ou excluídos por todos ao nosso redor e que todo homem ou mulher são iguais inclusive no que diz respeito ao caráter. Esse argumento logo cai por terra, (mesmo sabendo que o inconsciente não “racionaliza” ou entende dessa forma), pois se pensarmos que somos todos iguais, nós também devemos então nos incluirmos na lista dos traidores, violentos e discriminadores. Então, quando desacreditamos na raça humana, desacreditamos de nós mesmos.

A segunda hipótese é que estamos cada dia mais intolerantes à frustração. Amar, se relacionar e cuidar de gente sempre deu trabalho, gerou angústia, sentimento de impotência e frustração. Sim, pois estamos falando de espécie humana, e nessa relação percebemos que as coisas podem não sair como planejamos, afinal os outros nem sempre têm os pensamentos que gostaríamos que tivessem. Os outros nos olham feio, discordam, falam mal, nos fazem sofrer ou nunca nos obedecem. Quem disse que as relações são fáceis? Somos animais dotados de razão e é por isso mesmo que carregamos toda essa complexidade existencial e, quanto menos recurso interno temos, menos conseguiremos lidar com essa complexidade que somos todos nós.

Você já pensou por que o cachorro é chamado de melhor amigo do homem? Se seu dono gritar ou até bater no seu cão e chamá-lo um minuto depois, ele vem correndo, abanando o rabo e pronto para brincar. Seu cachorro te espera feliz ao voltar para casa como se você fosse a única pessoa importante na vida dele, sem contar que o amigo canino depende do seu cuidado, pois mora na sua casa e por isso você se sente o rei do pedaço. Aliás, o próprio Freud disse: “cães amam seus amigos e mordem seus inimigos, bem diferente das pessoas, que são incapazes de sentir amor puro e têm sempre que misturar amor e ódio em suas relações”.

Exceto nos ataques de raiva, o nosso cachorro é um animal que podemos minimamente controlar, não implicam com a gente, não precisamos dar satisfação a ele sobre nada do que vamos fazer. A questão é que não toleramos mais passar por todo esse difícil processo de trabalho emocional que a gente dá e recebe do outro, então tentamos gostar de quem menos nos incomoda e não de quem nos ajuda a amadurecer, pois crescer dói e teremos muitos atritos com essa pessoa.

Por trás desse ato de amor, onde todo mundo acha bonito o carinho que sentimos pelo cachorro, pode estar escondido aí um lado mais instintivo e “animal” dentro da gente. A psicanálise chama esse nosso “lado” de Id, que é uma das estruturas do psiquismo proposto por Freud. É a nossa parte mais primitiva, onde só importa a satisfação plena, o gozo, o prazer. Lá não existe espaço para frustrações. Essa fase começa no recém-nascido, e observamos o quanto ela é intensa nos bebês, por exemplo. Se não forem alimentados imediatamente, choram até perder o ar. Claro que, conforme vai crescendo, o bebê aprende a esperar por seu alimento, vai desenvolvendo uma estrutura racional, menos primitiva. Já não chora desesperadamente como antes. Mas o que isso tem a ver com a relação entre homem e animal doméstico? Podemos estar escolhendo nossos cães às pessoas para não lidarmos com a frustração que o outro pode nos proporcionar, preferindo o prazer pleno. A questão que levanto aqui é será que esta relação está baseada na razão ou no nosso lado primitivo?

Vamos pensar um pouco sobre as relações humanas. Nós nos formamos e desenvolvemos como humanos se tivermos a companhia e o afeto de outro ser humano. E nessa relação há alegrias, mas também há dissabores. Nem sempre essa troca vai nos beneficiar, vai nos confortar ou nos satisfazer. Talvez seja nesse desconforto que vamos conseguir crescer, amadurecer, nos fortalecer.

Agora vamos transferir essa relação para um animal. No momento em que eu prefiro a companhia e o afeto de um animal pra mim, e invisto tempo e dinheiro apenas nessa relação, estou desconsiderando a importância do outro semelhante na minha vida. Estou sabotando a chance de crescimento nesta relação. Esse excesso de zelo com os animais pode camuflar uma carência afetiva do seu dono. A mesma carência que ele não consegue suprir na relação com as pessoas, por vários motivos.

Claro que os bichos precisam de atenção e cuidado. O que importa pra ele não é saber que seu dono(a) o ama e cuida dele com carinho? Será que estamos cuidando em excesso do animal, transformando-o em um “ser humaninho”, para não nos ocuparmos de cuidar bem do nosso semelhante? Percebo que estamos nos eximindo dessa responsabilidade. Como podemos criticar a política, o governo, a sociedade em geral se não estamos conseguindo estabelecer os mesmos laços de confiança com os nossos pares e preferimos transferir esse sentimento para um animal de estimação?

Por último, sei que passamos por dias sombrios e sentimos certa depressão soprando aos quatro ventos, principalmente em nosso país. Mas enfatizo novamente que desistir do ser humano é desistir de nós mesmos. E uma das maiores dores que podemos sentir em nossa história é aquela quando percebemos e atestamos que desistiram da gente e que não merecemos o tempo investido.

Obs:  O autor é Psicólogo, palestrante, terapeuta de família casal.
Imagem enviada pelo autor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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