(Texto revisto e ampliado)

O grande teólogo Santo Tomás de Aquino, ao falar do conhecimento humano, ensina que, como não nos identificamos com a Verdade, o que só acontece com Deus, procedemos necessariamente por aproximações sucessivas em relação ao Ser. Assim, as sucessivas experiências se acumulam ao longo da vida e, desse modo, temos chance de nos aproximar cada vez mais, cada vez mais amplamente e cada vez mais profundamente da Realidade. Se tomamos a Religião como objeto de reflexão e de conhecimento, procedemos também por aproximações sucessivas.

Quando refletimos sobre Religião, sentimos que se trata de dimensão muito importante da vida dos povos e de cada pessoa, em particular. Por isso, religião é algo que nos toca muito de perto. Ao lidar com ela fazemos uma caminhada de idas e vindas por aproximações sucessivas. Perguntamo-nos, em primeiro lugar, pela forma: como explicar a configuração, o modelo concreto que vai tomando a religião na vida quotidiana das pessoas e dos povos? A Sociologia e a Antropologia nos ajudam a ver como o fenômeno se configura, que formas vai assumindo, e as formas, naturalmente, revelam as funções. Ou seja, que respostas concretas a Religião oferece às pessoas e aos grupos sociais, qual é sua utilidade para a vida, a que necessidades vitais responde em cada época, e como nela se reflete o estado geral da sociedade?

 Religião é criação humana de caminhos em busca de Deus. Como tal, é imenso oceano de criatividade popular, é algo natural aos povos. O Evangelho de Cristo não é uma religião a mais. A “religião cristã”, sim, essa é uma religião determinada no conjunto das religiões dos povos. Jesus, por sua vez, participou da religião de Seu povo, o Judaísmo, foi, aliás, muito crítico dela e não fundou nenhuma religião. A  Igreja nasceu do “Movimento de Jesus” para, em seguida, guardar a inspiração e levar adiante a tarefa do Mestre. Só depois é que a Igreja, por sua vez, assumiu as funções de “religião”, distinta do Judaísmo e do Paganismo. O Evangelho, porém, está para além de qualquer religião, pois é revelação do Caminho de Jesus (cf. Jo 14, 6), enquanto manifestação dos caminhos de Deus para nós. É pela fé que nos aproximamos desse Caminho (cf. At 9) e a partir dele é que somos chamados(as) a dialogar com as pessoas e os povos e suas culturas e religiões. Assim, há diferença fundamental entre Religião e fé. Fé é o fundamento de uma espiritualidade, a saber, de um jeito de ser, de pensar, de sentir e de agir “segundo o Espírito”, é sentir-nos transportados(as) muito além de nós mesmos(as). A cultura e a experiência religiosa podem e devem ser ponto de partida e instrumentos no diálogo com a fé, para que esta dialogue com a vida e os valores dos diversos povos e culturas. Ou seja, a Religião pode ser um dos meios para comunicar e expressar a fé. O que não deve acontecer é de tal modo se avolumar que chegue ao ponto de abafar e obscurecer a proposta da Fé. Os profetas da Bíblia se insurgiram veementemente contra isso (cf. Is 1; Am 5; Jr 7).  A experiência celta, por exemplo, tão cara ao povo anglicano, pode ser vista como um caso exemplar. O Evangelho anunciado se encarna numa cultura determinada e toma corpo nas expressões dessa cultura, animando a espiritualidade de um povo cujo “habitat” era a Natureza – a floresta, o vento, as fontes, os rochedos, os animais de terra e águas, os pássaros, o fogo.. (não lembra a espiritualidade afrobrasileira?). E fica-nos a pergunta que nos interpela na ação pastoral das Igrejas, pelo menos desde o século XV: por que foi possível inculturar a Boa-Nova na civilização grecorromana, nos povos germânicos, no povo celta… e não tem sido possível fazer o mesmo no diálogo com os povos afroamerídios, aborígenes  de nosso continente e povos e culturas africanas, nem com as civilizações milenares da Ásia? Sentimos o quanto a dominação – o colonialismo, o imperialismo – é capaz de criar e fortalecer preconceitos e bloquear o processo de evangelização, impedindo os povos de glorificar Deus em sua própria língua (cultura). As Igrejas trazidas pelos colonizadores se sentiam agentes da “religião e da moral da sociedade” e do Estado e, assim, deixaram que sua missão equivalesse a ideologia legitimadora da opressão e destruição. Tenho em casa um belo quadro da Irmã Adélia Carvalho, famosa artista da Caminhada. Do lado esquerdo, no alto, há um pobre homem aborígene ajoelhado, em pose de humilhação, recebendo em sua cabeça a cruz que se muda em espada. Tradução exata da tragédia do Cristianismo  na era moderna das conquistas européias: a cruz, em vez de redenção, significou derrota e morte, tão diferente do que nos diz o Apóstolo São Paulo em 1Cor 1-4. Aqui, por mais que alguns cinicamente queiram afirmar o contrário, não houve “diálogo de civilizações”, mas imposição, repressão, violência e extermínio físico e cultural… que infelizmente prossegue até hoje. Experiência de quão profundamente os elementos sociológicos, isto é, econômico-sócio-político-culturais, se podem refletir na visão teológica da Missão, degradando-a a ideologia justificadora de sistemas opressores, tão longe do Evangelho.

 Na Conferência de Lambeth 1998 (encontro decenal de todo o episcopado anglicano mundial), propus, e foi aceito pelos bispos(as) anglicanos(as) do mundo todo, que nos perguntássemos sobre a possibilidade de no futuro termos diferentes formas de Cristianismo, surgidas de diálogo profundo com as diversas culturas e religiões: Cristianismo budista, islâmico, induísta, africano, aborígene… Se considerarmos, por exemplo, que “juventude” já não é simplesmente uma idade, mas uma cultura própria, não temos de concluir que pode haver formas bem diferentes de Igreja entre jovens e pessoas adultas? É que, não sendo uma entre as demais religiões, o Evangelho vem para interpelar todas as experiências humanas, inclusive religiosas? Se erigimos nossa “religião cristã” a religião superior ou única e excludente, a estamos transformando em instrumento de morte, e a história já o tem mostrado suficientemente. Apresentar o Evangelho como essa religião única e excludente, em vez de o elevar, na verdade, o degrada, pois o “rebaixamos” a ser “uma” entre as demais religiões, que são todas criação humana para legitimar nossos projetos de convivência em sociedade. Durkheim, Max Weber e Carlos Marx, cada qual de seu jeito, no-lo mostraram muito bem. Decerto, religião é sempre legitimação de relações, de estruturas e da cultura de determinado modo de viver de cada povo. Ao contrário, a pretensão dos evangelhos é apresentar Jesus como o Caminho capaz de interpelar todos os caminhos criados por nós, capaz de interpelar toda e qualquer experiência humana, inclusive religiosa, até mesmo quando se denomina “cristã”. E a Palavra interpeladora, radical e, por isso, universal, é a pergunta pelo amor feito serviço e partilha, como se vê na alegoria acerca do Julgamento Final em Mt 25, 31-46 (cf. Mc 10).

Para além das formas e das funções, podemos perguntar-nos “por quê”: donde surge a Religião? Em outras palavras: por onde nos chega Deus ou onde se nos manifesta? Por que sentimos essa necessidade e através de que nos “religamos” efetivamente com o Mistério que nos habita? É a pergunta da Filosofia e a busca incessante da Teologia. Ao abrirmos os olhos para a realidade do mundo e da vida, temos a intuição de que “a vida não é só isso que se vê, é um pouco mais, que os olhos não conseguem perceber, as mãos não ousam tocar, e os pés recusam pisar”. Assim cantava lindamente “a divina” Elizeth Cardoso, ao contemplar a beleza da Mangueira, engalanada, descer o morro para o esplendor do samba no Carnaval. É essa a intuição profunda que nos provoca a “religar-nos” ao Mistério escondido que se intui presente por detrás e no profundo do que aparece. E essa “religação” torna possível “reler” a vida à luz daquele horizonte oculto “que os olhos não conseguem perceber…”, mas que intuímos como real e presente, ao sentirmos que “a vida não é só isso que se vê, é um pouco mais”. Ao falar de “pouco”, quem sabe, desejamos insinuar que a experiência do Mistério transparece como dimensão discreta, que se acerca e se oferece, sem ofuscar com o resplendor de sua luz, se propõe sem se impor nem anular nossa busca. É só no “Caminho” e tantas vezes no “deserto” que vamos ter a chance de experimentá-lo e, desse modo,  convencer-nos de sua “presença real”. É por isso que Religião e Fé brotam das mesmas fontes, a saber, da intuição do Mistério como manancial de que flui o mundo e a vida.

A experiência bíblica é claríssima a respeito e fala disso num dos textos mais clássicos da tradição da fé. Foi no momento em que falava de Libertação, que Deus revelou Seu Nome (cf. Ex 3, 1-15). Ora, a Antropologia Teológica nos ajudou a perceber que é a liberdade o “lugar” em que Deus se faz próximo de nós (cf. Gl 5), em nós.. É que, no ato humano de exercer a liberdade, nós nos ultrapassamos, nos transcendemos e transcendemos todas as coisas. Ora, para a pessoa, ir além de si mesma é amar, é entregar-se na confiança de que dar-se, ou até morrer de amor ou morrer por amor, é estar na plena posse de si, é a suprema e mais poderosa afirmação da própria vida. É o que leva Jesus a dizer: “Quem quiser guardar sua vida, a perderá; mas quem perder sua vida por causa de mim e do Evangelho, a salvará” (cf. Mc 8, 35). Ir além de si por causa de alguém, o que equivale a dizer “por causa da Boa Nova” da fraternidade, é situar-se no horizonte da transcendência, ou seja, de Deus. No amor não cabe morte, é sempre vitória sobre a morte (cf. 1Cor 15, 55-56), por isso não cabe o medo (cf. 1Jo 4, 18), é liberdade. Daí, por que não é difícil entender que é no amor, exercício supremo da liberdade, que tocamos o mistério de Deus (cf. 1Jo 4, 7-8), mesmo que não o saibamos e até O neguemos no ateísmo teórico. Pois a fé não exclui necessariamente o ateísmo, a negação da fé é a idolatria, cuja fonte é o medo de viver e de entregar-se em amor.

Esta é a razão pela qual, nas Escrituras, a verdadeira religião se expressa na prática do amor, na solidariedade e na justiça, ou seja, na prática da fé (cf. Is 1, 10-20; Tg 1, 19-27). Por isso, a religião bíblica é essencialmente ética e só secundariamente ritual. Baste verificar o forte contraste entre o livro Levítico (santidade ritual, desautorizada por Jesus, cf. p.ex. Mc 7) e o Deuteronômio (santidade ética, isto é, responsabilidade para com o próximo, cf. Mc 12, 28-37); baste ler as denúncias proféticas que condenam, de modo tão contundente, a religião vazia e incapaz de salvar. Um pensamento pode resumir nitidamente a visão bíblica: “Há muitas maneiras de amar o próximo, mas só há uma maneira de amar a Deus, amando o próximo” (frase exposta em igreja anglicana do Porto, Portugal).

Se a fé bíblica não precisa de rituais próprios para salvar, a Religião não passa de instrumento humano, linguagem, para que se comunique e se expresse a Fé, esta, sim, o que nos assimila a Deus, daí dizermos tratar-se de “virtude teologal”, princípio divino. Se até “gentios” e ateus podem chegar a ter profunda experiência de Deus, como nos sugere Jesus nos evangelhos (cf. Mt 8, 10-13; 7, 23), por que insistimos em cumprir rituais religiosos? Por que nos dedicamos tanto à Liturgia? Por que, no Anglicanismo, por exemplo, sublinhamos o antigo princípio católico de “lex orandi, lex credendi” (é na oração que se manifesta e se aprende a fé)? Por que chegamos até a dizer que a adoração litúrgica é o espaço primeiro e o mais adequado para a formação do discipulado cristão? É que o encantamento do Amor, sua prática quotidiana que tem o poder de tudo transfigurar e transformar, não subsiste sem o mergulho reiterado nas fontes da poesia. Só os poemas são a maneira mais adequada de falar do amor e assim renová-lo e fortalecê-lo. Ora, os poemas são necessários. São como Deus, gratuitos, mas não supérfluos. Não basta servir as pessoas que amamos, fazer-lhes tudo o de que necessitam, ou lhes é útil ou mesmo só agradável. É preciso, de vez em quando, parar, olhar nos olhos, tomar das mãos e dizer: “Eu te amo”, e com gestos gratuitos, sem finalidade útil, celebrar o amor. Os seres humanos somos feitos assim, nós nos construímos enquanto nos simbolizamos, somos enquanto nos expressamos, ação e poesia se chamam uma à outra. Não basta praticar a vida, é preciso também cantar a vida. É o que, em outras palavras, nos diz um grande teólogo socialista anglicano do século XIX, Frederico Maurice: Religião, Igreja, Liturgia são “anámnesis”, “memorial”, trazem à tona o que está contido secretamente no dia-a-dia da vida. É preciso cumprir sempre o duplo papel de formiga a trabalhar para prover os meios de vida e o de cigarra a cantar. Sem a beleza da arte o quotidiano perde brilho e já não encanta. A linguagem da Igreja diz isto com a categoria “Sacramento”, “sinal visível da Graça invisível”. A Graça é Deus presente em nós e a manifestar-se em nossas práticas inspiradas pelo amor, práticas de serviço, de solidariedade, de justiça e de compaixão ou cuidado (Marcas da Missão segundo a  Comunhão Anglicana). Mas é preciso “trazer à tona”, recordar sempre de novo o sentido oculto que deve inspirar e transfigurar tudo o que fazemos. Ao lembrar o amor, nós o alimentamos, o fortalecemos e o fazemos crescer em nós. O amor acaba quando já não se diz “eu te amo”, quando já não se o celebra gratuitamente em poemas e em gestos gratuitos de carinho. É o que quer dizer a Teologia quando fala de “crescer em graça” mediante os gestos sacramentais. Com efeito, Deus não se contenta com fazer Seu trabalho de criação. Diz-nos o livro de Gênese que, ao completar cada uma das obras, sente a irresistível necessidade de manifestar Seu encantamento: “E Deus olhou e exclamou: “Ah, que bonito(bom)!” E após a criação do ser humano, não se conteve: “Ah, é tão bonito (bom)!” (cf. Gn 1).

Os antigos teólogos falavam assim dos sacramentos. Primeiro, há a Realidade (“res), é Deus, é a Graça operante mediante a prática da fé, da esperança e da caridade, isto é, a prática do amor(caridade) que nos dá novos olhos para ver a vida (fé) e lançar-nos confiantemente ao infinito sem desistir nunca (esperança). Em seguida, há os Sinais exteriores que a expressam (“sacramentum tantum”: somente sinal);  é o que fazemos, por exemplo, na liturgia, com gestos religiosos de orações, cânticos, leituras, pão, vinho, água, azeite, luz, ações rituais…). E há uma dimensão intermediária, sintética, traço de união entre as duas pontas: “Res et Sacramentum”: somos nós, “sinal e realidade”, nossas próprias pessoas, nós, a comunidade, pois em nossas pessoas as duas dimensões se interpenetram e se confundem, pois somos nós que praticamos e celebramos, a saber, nós que, simultaneamente, amamos em gestos úteis de serviço e que celebramos em gestos gratuitos e poemas de amor. O povo grego antigo teve disto a intuição quando falou de “poíesis” que quer dizer “ação”, ou seja, poesia não é fantasia e ilusão, mas a beleza dos sonhos geradores do que fazemos no dia a dia, os sonhos criadores de nossa prática de vida.

Os sinais por si mesmos são ambíguos, o beijo pode ser entrega ou traição, o sorriso pode ser afeição ou ironia, o ato sexual pode ser oblação ou pura posse… Nos sinais da Liturgia se dá a mesma ambiguidade. Por isso, nós é que somos a “res” do “sacramentum”, ou seja, é em nós que “acontece” a Graça, em nós é que se faz a verdade do sinal, mediante o qual celebramos, é em nós que a Graça se “verifica”, se faz verdade em nossa PRAXIS, quando coincide nosso dizer (celebrar) com nosso agir (praticar). É por isso que a Liturgia tem pleno sentido e é necessária, para transpor a zona de sombra, a ainda não transparência do Mistério. Como tocar e como descrever a experiência de Deus em nós, sem que seja por gestos e expressões simbólicas? Em outras palavras: como tocar e descrever o amor, senão por gestos, imagens e símbolos? Na verdade, é assim que fazemos quando expressamos amor entre nós. Nunca podemos mostrá-lo em si mesmo, só mediante gestos e palavras que o simbolizam A questão decisiva que se coloca não é “liturgia, sim, ou não”, pois a vida toda é essencialmente “litúrgica”, simbólica; religião, sim, ou não, pois a vida toda é busca de “religar-se” ao Mistério da existência. Importa, antes, perguntar pela veracidade ou sinceridade de nossa Liturgia: se dizemos a verdade quando estamos a celebrar e compor poemas, e, por certo, a dizemos quando a “fazemos” (cf. Jo 3, 21) no ato de celebrar e para além dele; quando em nossa prática de vida “a palavra se cumpre”. Celebramos, de fato, o amor que praticamos? Praticamos o amor que celebramos? Liturgia é nosso mais sublime poema de amor, por isso é eminentemente exercício estético, tem de ser bonita, canta nossos atos amorosos e nos fortalece para voltar a vivê-los. Ou não passará de palavras e gestos falsos e ilusórios. A estética da Liturgia tem tudo a ver com a práxis da Economia, com a práxis da Política e com os valores éticos que nos guiam no quotidiano. Do contrário, seria vazia, alienação e “ópio do povo”. Por isso, ao antigo axioma católico “lex orandi, lex credendi” urge acrescentar “lex credendi, lex agendi”.

Na Bíblia, por exemplo, a história de Ana (cf. 1Sm 1, 1-20), é cativante e comovente cena da religião popular no espaço litúrgico. Narrativa do quotidiano do povo, entre amor e ciúme, sonhos, frustração e angústia. Deus é invocado como fonte misteriosa capaz de tornar possível o impossível. SAMU-EL será o sinal palpável de que “Deus escuta” (é o sentido de seu nome) o clamor dos aflitos e não se envergonha de se misturar com nossos sentimentos e comportamentos confusos. Encontramo-Lo no meio de nós (Emanu-El)… E dessa circunstância familiar, que parece tão restrita e enredada em intrigas privadas, surge o grande profeta do povo, mergulhado de cheio nos problemas políticos da transição entre o tribalismo igualitário e o centralismo monárquico. Naquele momento decisivo da história do país, Samuel personificou a denúncia profética frente aos poderosos do dia.

É a esse horizonte mais amplo, do destino coletivo do povo, que nos remete o poema litúrgico que é o Salmo 80. No exílio, sob a opressão do império de Babilônia, quem ora se recorda do passado, do memorável evento da libertação do Egito. Agora, porém, tudo mudou, as trevas obscurecem a visão do futuro. O país é como vinha devastada. Espelho de nosso próprio país, onde, além das mortes por fome, doenças e calamidades ditas “naturais”, a cada dia são assassinadas cerca de cem pessoas ou mais, como em guerra… Espelho do mundo dominado pelo imperialismo e em grave crise econômica e ecológica – crise da “lei da casa” (eco-nomia) imposta por nós, que põe em risco radical a “lógica da casa” (eco-logia): “o javali da selva a devasta e as feras do campo a destroem”…

É a mesma a denúncia do Evangelho: os responsáveis, os administradores da vinha, dela se apropriam, em próprio benefício (cf. Lc 20, 9-19). Por isso, perseguiram e continuam a matar os profetas e a, finalmente, rejeitar o Filho. Nós persistimos a esperar a intervenção de Deus “contra esses assassinos”, e para essa obra é que estamos em marcha, junto com o Senhor, como nos diz o Salmo 150: “O Senhor ama o seu povo e coroa com Sua vitória os oprimidos; os fiéis celebrem Sua glória e cantem com júbilo em seus leitos; nas gargantas, aclamações a Deus, espadas de dois gumes em suas mãos” (v.4-6).

Por isso, a autenticidade de nossa Liturgia depende de sua semelhança com aquele momento de oração descrito nos Atos dos Apóstolos: a unânime expectativa do derramamento do Espírito que nos transforme e mova a Igreja à missão, à proclamação e ao corajoso testemunhode que “outro mundo é possível”, necessário e urgente, como se faz ver na vida das primeiras comunidades cristãs quando “ninguém considerava só seu o que possuía” e “sendo um só coração e uma só alma”, “não havia indigentes em seu meio” (cf. At 2, 42-47; 4, 32-37). Eis a prova de autenticidade da Liturgia e da  verdade de nossa religião (cf. Tg 1, 26-27). A questão central da Liturgia e do conjunto de qualquer religião é a mesma proposta pela própria Bíblia: cremos e celebramos o Deus fonte da vida, princípio da dignidade humana pessoal, da solidariedade comunitária, da justiça social a impregnar as estruturas da sociedade, e da compaixão por todos os seres do universo; ou cremos e celebramos os ídolos da morte que só nos iludem e perpetuam o sacrifício e a dominação (cf. Sl 115 e 135)? Deus nos livre de ter de escutar a terrível condenação lançada pelo profeta Amós: “Afasta de mim o ruído de teus cantos, já não posso ouvir o som de tuas harpas. Que o direito corra como água, e a justiça como arroio perene” (Am 5, 24).

Deus nos conceda Sua lucidez, Sua coragem e Sua bênção!
14.06.17

Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….

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