São Constâncio estava no fogo da perseguição. Mas 40 famílias, de cabeça erguida, andavam no meio da fornalha sem se queimar, com grandes turmas de peões derrubando o mato, com palmeiras caindo de todo lado, com capangas exibindo arma. Sim, era uma fornalha. A Comunidade se reunia na Capelinha, imprensada entre o curral e a casa da fazenda, cantando para o opressor ouvir, insistindo nas promessas de Jesus. O animador abria o Evangelho e tirava deste tesouro coisas novas e velhas.

O Rei Nabucodonosor que naquele tempo jogou três jovens na fornalha ardente surpreendeu-se com um quarto jovem, vestido de branco, que no meio das chamas cantava salmos com eles. A mesma surpresa foi do gerente da fazenda a quem o povo tinha dado o apelido acertado de Golias. O homem dizia: Quem é que dá força para este pessoal cantar ainda? – Mas, enquanto o Rei se convertia, Golias se endureceu: Vou acabar com estas celebrações na Capela! – Mandou dizer ao animador Antonio: Se você quiser viver mais uns dias, largue este ofício!

O susto valeu, e Antonio fechou a capela, pois não era ele aquele quarto jovem. A porta não se abriu no outro domingo para acolher o povo. Isto doeu a São Pedro no céu, que guarda as chaves do Reino. Quem pode fechar a igreja sem a minha ordem?

O Santo avisou no sonho outro Pedro, morador de Lago Verde, que é ferreiro: “Amanhã você vai ter que lapidar sua língua”! – Este Pedro, animador de comunidade, preparou sua língua qual espada afiada e, como era Domingo, pregou no Culto com tanto fervor que o velho José Marçal falou: Êta, Evangelho pesado! – Só então ficou sabendo da capela fechada em São Constâncio. Quando saiu da igreja pensou consigo: A missão ainda não foi esta! – Com isto foi para a casa do Golias que tem segunda residência em Lago Verde e avisou: No Domingo que vem vai ter Culto no S. Constâncio! – A mulher disse: Eu vou dar o recado ao marido!

No dia seguinte, Pedro teve outro sonho: Viu São Francisco no meio dos pobres, fazendo curas e tendo o cordão laçado pelo pescoço. Compreendeu que o sonho lhe mostrava uma Imagem da IGREJA VIVA NO MEIO DAS POBRES, sendo enforcada pela perseguição. Ele pensou: Nós temos que desatar este nó. – No caminho da roça,, de noite e de dia, só pensava na  capela fechada, pedindo a São Pedro que lhe mostrasse a chave. E Deus que faz as coisas bem feito, arranjou um companheiro para ele na pessoa do Sr. Honorato que é sacristão em Lago Verde. Este homem, voltando na segunda-feira da roça, encontrou na praça uma mulher vistosa, desconhecida, que não lhe saía da cabeça. E este vulto, de noite lhe apareceu em sonho: estava ele, o sacristão, saindo do portão da igreja com um pequeno grupo de gente, quando encontrou a dita mulher que perguntou: Vocês vão acender velas? Eu vou com vocês! — Foi só o que ela falou, e o sonho mudou de cena. Chegou um Franciscano amigo que se debruçou sobre a cerca, dizendo: Já corri muito, mas ainda não fiz nada! – Foi entrando pelo terreno da igreja e, quando chegou perto da porta, um bando de pássaros arribou assustado.

Esta historia é tão cheia de sonhos que é difícil saber qual  é a realidade. De manhã, Honorato pediu a Sr. Pedro: Me diga qual é o sentido do sonho? Pedro respondeu: Combinou com o meu! O frade que você viu é S. Francisco. Ele não disse: Vamos começar porque até agora nada fizemos? – Os pássaros que voaram são os posseiros de São Constancio que estão no perigo de serem expulsos. O Santo está dizendo para nós visitar a Comunidade aflita. Você vai comigo domingo que vem? A mulher do sonho falou em acender vela, é porque você é sacristão e o seu trabalho no culto é acender luzes. – Assim, o Pedro já tinha um André, e o grupo foi crescendo.

No domingo, dia primeiro de julho de 1984, quando deu uma hora da tarde, Sr. Pedro atravessou o cancelão que abre a estrada para São Constancio. Os acompanhantes atrasaram-se um pouco na casa de um amigo. Havia três capangas armados, a cavalo, e Pedro pensou: Ainda bem que estou sozinho No meio de muitos, alguém poderia perder os nervos! – Os capangas se decepcionaram, quando o aspecto deles não desanimou a viagem do peregrino. Sairam da sombra e pararam o homem numa passagem estreita depois do igarapé: Para onde vai, meu velho? – Quem falou foi um valentão que o povo apelidou de Chapéu de Couro. O ferreiro falou: Eu vou celebrar o Culto na Capela de São Constancio. – Mentira: nós sabemos que você quer agitar o povo e prometeu dar terra a eles. – Se eu pudesse dar terra, já teria dado o Brasil todinho. Eu não sou dono de terra, mas sou dono da minha missão. Por isso vou celebrar o culto e vocês podem ir também. – Com isto pediu passagem e não quis mais conversa.

Quando ele chegou no São Constâncio com seus acompanhantes, a coragem do povo já tinha aberto a capela que estava repleta de gente. Pedro entrou e os capangas com ele. Dirigiu-se ao Chapéu de Couro, dizendo assim: Agora se sente aqui, mas tire o chapéu, porque estamos na igreja! – Enquanto o povo acabava de chegar, iam treinando um canto que dizia assim: “Quem pratica injustiça não tem Deus no coração”! – Não paravam de cantar, insistindo no mesmo verso, até que os intrusos se incomodaram e saíram.

A leitura era da Sunamita, no segundo livro dos Reis, cap. 4, que hospedou o profeta Eliseu em sua casa. Na turma de Lago Verde tinha o animador Domingos que fez a leitura do Evangelho e emendou logo a reflexão, só para não dar a palavra a Sr. Pedro, pois temia que o fervor dele fizesse algum estrago. O nervoso dele aumentava, quando do lado de fora se ouviam tiros pelo ar. Mas não era para isto que o ferreiro tinha “lapidado sua língua”. No fim do culto achou uma brecha e retomou a leitura da Sunamita: Esta mulher rica acolheu o peregrino e instalou até um quarto para ele. E hoje, o que estão fazendo com Jesus que peregrina pelo mundo? Estão fechando a porta para ele e não querem ouvir sua palavra. Mas vocês o acolheram e abriram a porta que um outro fechou! – Depois apresentou o Animador local Antonio: Este é o homem que vocês têm que confiar nele. E esta igreja não fica mais fechada!

Assim terminou o culto. Quando Domingos passou perto da calçada da Fazenda deu para ouvir bem alto: Os vagabundos já vão! Mas o grupo se alegrou, porque foi achado digno de sofrer afrontas pelo nome de Jesus.

No caminho de volta, o Sr. Honorato – a visão noturna ainda era viva na sua  cabeça – falou: Agora eu sei quem foi a mulher que eu vi no sonho e que falou em acender vela: A mulher foi a Sunamita. Ela ficou alegre porque nós íamos acender uma luz no São Constâncio.

São Pedro no céu ficou satisfeito: contou as chaves do Reino e não faltava nenhuma: O povo do Lago Verde e do São Constâncio se alegrou quando soube que ainda tem um profeta em Israel.

(01 de julho de 1984)

Obs: Fotos enviadas pelo autor: a primeira é do ferreiro Pedro; a segunda é do sacristão que encontrou a Sunamita nas ruas de Lago Verde

O autor é  Frade Franciscano, nasceu na Alemanha em 1940.
Chegou ao Brasil como missionário em 1964. Depois de completar os estudos em Petrólis atuou no Piaui e no Maranhão. Exerceu trabalhos pastorais nos anos 80 em meio a conflitos de terra. Desde 1995 vive em Teresina no RETIRO SÃO FRANCISCO onde orienta pessoas na busca da vida espiritual.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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