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(A Carlos Mesters, Mestre de todos e todas nós)

Quando Carlos fez sessenta anos, reunimo-nos em São Paulo para festejar. As pessoas presentes éramos bispos, pastoras, pastores, freiras, padres, frades, mulheres e homens do laicato de Igrejas várias… afinal, amigas e amigos do Carlos, discípulas e discípulos de seu magistério bíblico. De presente, sob a cuidadosa coordenação do pastor luterano Carlos Dreher, de São Leopoldo, tínhamos preparado no CEBI um livro que continha diversos artigos em sua homenagem. O livro se chama “Reflexos da Brisa Leve”, título em lembrança de sua intimidade com o profeta Elias (Carlos é “peregrino” carmelita), em sua caminhada até o Horeb, o Monte de Deus, para reencontrar-se com o carisma de Moisés (cf. 1Rs 19, 12). A “brisa leve” pode perfeitamente equivaler à “voz de um suave silêncio”… que os caminhantes são capazes de escutar.

Por aqueles tempos, dizia-se a boca pequena que em Roma os escritos do Carlos não estavam sendo bem vistos. É verdade que não se podia falar de “heresia”, mas, no que escrevia, parecia “pairar um forte e difuso clima de heresia”. O mesmo se chegou a dizer da obra de José Comblin, um de nossos maiores teólogos, e Dom Helder, interpelado por ser o Padre José um de seus assessores e conselheiro em Teologia, tinha respondido, corajosamente e com certo irônico humor, ao núncio da época: “Contra clima de heresia, eu como bispo não posso agir, seria preciso identificar claramente alguma heresia formal”. Tentava-se passar a imagem de que a Teologia da Libertação pretendia constituir-se em “magistério paralelo” ao dos bispos, inclusive do bispo de Roma. Sabemos como essa “tecla” do Magistério é algo muito sensível na Igreja Católica Romana. Pois bem, nesse clima, o grande Dom Pedro Casaldáliga, sempre cuidadosamente “seguido” pela Ditadura e pelo Vaticano (cf. o livro e o filme “Descalço sobre a Terra Vermelha”), sempre gigante, fez um lindo discurso em nome dos bispos e terminava dizendo mais ou menos assim: “Carlos, nós continuamos fiéis a teu magistério bíblico”, naturalmente ovacionado com vibrante salva de palmas.

Como parte do livro, escrevi um comentário ao Salmo 1º, o solene pórtico do Saltério, sob o título de “Abençoado o Homem”, contemplando o justo, não só como fiel, mas em íntimo matrimônio com Deus. Todo o conjunto dos salmos é editado sob o enfoque do Justo (o povo e os membros do povo) que acompanha o Messias (cf. Sl 2 e 49-50) em sua luta incessante para estabelecer Seu Reino de salvação neste mundo. Estabelecer o “xalôm”, a saber, a felicidade (cf. Sl 85), o que hoje chamamos de “bem viver”, ao querer aprender as lições antigas de nossos povos ancestrais em nossa Afroameríndia e na própria África e em tantas outras terras por este mundo afora. Ao concluir, perguntava: “Seria estranho meditar o Sl 1º pensando em Carlos Mesters?

Recentemente, ele nos assustou ao passar por enfermidade. Ainda bem que as notícias de seu restabelecimento já se espalharam com rapidez e alegria para todos e todas nós. Naqueles dias, em trepidação e preocupação, vinha-me sempre a frase do Apóstolo São Paulo, na carta aos queridos irmãos e irmãs da Igreja de Filipos: “Para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro. Mas, se o viver na carne me dá ocasião de trabalho frutífero, não sei bem o que escolher. Sinto-me num dilema: meu desejo é partir e ir estar com Cristo, pois isso me é muito melhor, mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa” Fl 1, 21-24). Ao escrever-lhe lembrei este texto. Graças a Deus, para proveito nosso e alegria de nossa fé (cf. v 25). É, sim, na verdade, em Carlos se sintetizam bem a veia missionária de andarilho do Evangelho e a veia mística da “criança” completamente nas mãos do Pai (ou da Mãe? cf. Sl 131) Aqui pra nós, entre as pessoas que conheço, Carlos é uma das que melhor realizam o ideal da “infância espiritual”, como se diz na tradição mística. Ele mesmo gosta de dizer com seu sorriso de menino brincalhão: “Sou sempre eu que estou na boleia, mas quem dirige é Outro”.

Ao concluir o artigo, ia dizendo, ousei dedicar-lhe um quase-poema, no qual contemplo e canto esse encantador alto de estatura que “desce” com os pequenos do povo, árvore solitária em seu celibato, de abundante fecundidade e feliz, de brilho de sol, para tanta gente enxergar em sua luz e perceber como a Palavra está aí, bem perto e bem dentro de nós… “semente só” que se alonga em raízes e se alarga em ramos espalhados por este continente e por outros afora, homem feito assembleia… algo dele está sendo gerado em cada qual de nós:

“O JUSTO BROTA COMO A PALMEIRA” (Sl 92, 13)

O justo é alto como a palmeira
árvore solitária, fecunda
parreira irrigada
fruto da “alegria de deuses e humanos”
simples da pureza de águas cristalinas
de brilho irradiante como o sol
ao abrir-se da “flor sem defesa”
ruminante da Lei de seu Deus, “ferramenta”
de dia e de noite
por ela valem todos os prazeres
do coração.

Caminho do justo:
caminho estreito dos pobres de Deus
com eles desce
aos “porões da humanidade”
sofre e carrega “a missão do povo”
firme da “esperança
de quem luta”
em aliança.

Raízes alongadas
ramos espalhados
semente só
em árvore multiplicada
homem
feito assembleia…

Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….

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Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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