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Era uma casa velha, completamente em cor verde escuro, até mesmo as escadas, as paredes de madeira, tudo; havia poeira no ar – como uma espécie de névoa não sendo possível distinguir muito bem toda a mobília antiga daquela sala com tapete. Eu sabia, inicialmente, que estava ali acompanhado com mais pessoas que estavam no andar de cima, e sabia também – como se eu fosse onisciente – que haveria uma decapitação.
Não demorou muito, como eu não quisesse subir, uma cabeça sem corpo desceu as escadas sorrindo e cantarolando para mim (algo que não fui capaz de decifrar) e aquela cabeça tinha asas no lugar das orelhas…
Quando terminei de contar esse sonho estranho que tive, há algumas noites passadas, minha amiga espírita me disse que deveria ter cuidado porque meu espírito passeara por esses locais, e tal sonho nada mais era do que a lembrança daquilo que meu espírito vira enquanto eu dormia. Ignorei-a completamente, como frequentemente ignoro a maioria das coisas, simplesmente porque não consigo acreditar que estive presente em uma casa onde decapitações acontecem, e pior ainda, cabeças voam subindo e descendo escadas a sorrir para mim…
Foi na psicologia junguiana que encontrei sentido mais completo para o emblema e forte impressão que sonhar tudo aquilo me causara. Segundo as interpretações que colhi nas pesquisas que fiz, o sonho era o arquétipo de que minha cabeça e meu coração ironicamente estavam cindidos, tornando-se incompatíveis entre si. E minha cabeça, o representante da razão em mim, gozava de toda primazia e liberdade, dona de asas próprias para fazer o que quisesse.
Era minha cabeça voando naquelas escadas a rir de mim mesmo. O prenúncio de tudo isso, nada novo parecia trazer, sinceramente. Quem não sabe que a razão milita contra o coração, que a cabeça – o pensamento – é o que nos protege dessa espécie de torpor do coração que vive ao sabor das emoções. Mas dias depois, quando já passado algum tempo da impressão súbita que aquele sonho psicodélico me causara, foi como se a imagem de um coração, cujas asas que possuía estavam cortadas, pousasse sobre mim como brisa suave em um dia de verão quente de profundo ressecamento da alma.
Ora, se a cabeça com asas sorria e dizia coisas – contra as quais eu nada poderia dizer, porque nem mesmo era capaz de ouvir, já perdida a completa sensibilidade de mim mesmo – o coração de asas cortadas, a sangue, mesmo mudo, à luz do dia e sem recorrer à efemeridade dos sonhos se apresentou diante de mim como coisa involuntária e inevitável que eu também possuía.
Eu possuo um coração. Uma revelação à luz do dia, diante do sol e do barulho das coisas tomou-me sem o medo de subir as escadas onde veria minha cabeça e coração em definitivo separarem-se para viverem a impossibilidade daquilo que juntos jamais aconteceria. Se de um lado minha cabeça aproveitava de suas asas, aquele coração que comigo falara tímido e urgente queria suas asas de volta, para guiar não a si apenas, como ao corpo esquecido naquele quarto em que minha onisciência sonhadora vislumbrou completamente como lembrança – parte do sonho que eu me esquecera.
Na verdade, agora isso é o certo: não foi a cabeça que por si decapitou-se do corpo, mas o próprio corpo, para salvar-se, libertou a cabeça! É o que vi. Ela é o que vive. Ele é o que morre. O resto do corpo mortifica-se sem asas, sem um sonho noturno sequer. A cabeça, essa coisa viva e com asas, permanece sorrindo, enaltecendo a si, para si, enquanto o coração cerceado e mudo vai esquecendo-se.
Despertei. Sonhei que havia sonhado que escrevia este conto, e de fato o escrevia em sonho como história que me lembrava mesmo enquanto sonhava. Agora não sei se o escrevo de fato, ou se ainda sonho com a veracidade das impressões que me tomaram tanto à noite, quando sonhava, quanto de dia, quando me apareceu o coração que agora recria suas asas fora de mim, porque o peito, eu sinto, está vazio.
“A simplicidade de um estilo.”(JLopes)