Diferente dos dias anteriores, ensolarados e quentes, o domingo amanheceu nublado e tomado por chuva fina. Era véspera do início do ano letivo e de minha estreia no colégio Atheneu. Ao sair de casa evitei abraçar os parentes e amigos. Despedimo-nos com olhares. A partida da marinete – Itabaiana / Aracaju – estava marcada para as 7 horas. Embarquei 15 minutos antes. Troquei de lugar e tomei assento no último banco, local onde era possível, por mais tempo, observar os lugares de minha infância e adolescência. Pessoas idosas, protegidas do sereno, atravessavam a praça da Santa Cruz para a missa dominical. Outros comiam arroz doce e mingau em volta a uma mesa pequena de madeira após uma noitada de farra.

A marinete iniciou a viagem de forma lenta. Parava em toda esquina para pegar passageiros. Transportava muita gente, em número bem superior aos limites da prudência. A estrada a ser enfrentada era mais apropriada ao tráfego de carroças. Pela frente, 70 km desconfortáveis de buracos e muita poeira.

Minha mãe, meus irmãos e alguns vizinhos estavam em frente ao grupo Escolar Guilhermino Bezerra e aguardavam a marinete passar. Queriam viver um pouco mais de minha presença. Estendi o braço, acenei um demorado adeus e permaneci olhando pela janela, até quando podia ver alguém. Sentia-me como se estivesse tomado por uma despedida eterna da família, da cidade e dos amigos. Meu coração chorava em silêncio. No entanto, os olhos rejeitavam derramar uma só lágrima. Órfão de pai vivo antes do segundo aniversário, depois de tempo prolongado de dificuldades e pobreza, estava vivendo um novo começo. Assumi que daquele momento em diante minha educação passava a depender somente de meu esforço. Rabisquei dentro da mente as minhas vontades e via somente o aprendizado escolar como pano de fundo para mudar de classe social. Fechei os olhos e respirei, precisava estimular de forma corajosa a obstinada teimosia de ser vencedor, sem incluir nada ilícito ou fora do meu alcance.

Tio Daniel me esperava na rodoviária, cordial e afetuoso. Ao seu jeito, ajudou-me levar a mala. A chegada em sua casa foi uma festa revelada por cada um através de expressões faciais e gestos de boas-vindas. Estava carregado de ansiedade, mas sem manifestações verbal ou motora perceptíveis. Fui recebido, sem nenhum receio de estar enganado, como novo familiar e logo estava íntimo de todos.

O Atheneu era uma instituição de ensino notável. Das salas de aula transbordava sabedoria para as ruas, para a cidade e para o país. Havia um intercâmbio descontraído e cordial entre os alunos e os professores. Estes transmitiam sensação de confiança e respeito. Doavam seu tempo aos que estavam aprendendo. Estimulavam nos alunos a criatividade e os capacitavam para o ingresso nas universidades.

De segunda a sexta permanecíamos mergulhados numa poluição de informações. Nos fins de semana, vivíamos o presente e procurávamos realizações e prazeres imediatos. A inspiração absorvida procedia dos Beatles, Rolling Stones e Jovem Guarda. A influência dos modismos era facilmente incorporada pelos adolescentes, principalmente, quando o jovem sentia necessidade de demonstrar sua própria identidade e exteriorizar sua capacidade de assumir diferentes comportamentos e atitudes. A tendência da época era calça jeans, cabelos longos, barba a fazer, camisas estampadas, fivelas grandes e linguajar com gírias. Os ídolos do rock e do iê-iê-iê ditavam o nosso estilo.

Os comunistas do Atheneu formavam um grupo de estudantes que continha oradores extraordinários com grande poder de persuasão. Portavam ‘O Capital’, de Karl Marx, na ponta da língua e exerciam influência envolvente no meio estudantil, propondo propriedade coletiva dos meios de produção. Senti-me atraído pelo florescente movimento revolucionário. Entretanto, não possuía experiência e maturidade para ingressar numa pequena unidade política e promover sua multiplicação. A fugaz atração despertou-me a necessidade de melhor disciplinar a mente e o raciocínio, a fim de que tudo ocorresse exatamente conforme minha determinação de ser apenas estudante. O envolvimento com a doutrina marxista poderia levar-me à clandestinidade. Os líderes estudantis declarados insatisfeitos com o regime sombrio imposto pelos militares passaram a ser perseguidos e agredidos. Para evitar a tortura e a morte, os militantes fugiram, deixando seus admiradores inexperientes privados de liderança.

A tentação das drogas desafiava a nossa curiosidade. Embora os efeitos maléficos das drogas fossem amplamente divulgados, percebia-se que o número de usuários, no colégio, estava em expansão. O fácil acesso e o baixo custo tornavam a maconha e os solventes as drogas mais consumidas.

Os professores nos advertiam sobre os perigos das drogas e incluíam como riscos para iniciação fatores familiares, sociais, econômicos, culturais, genéticos e insatisfações pessoais. Também alertavam sobre as mudanças que os drogaditos apresentavam: relacionamento precário com os pais, pobre obediência às regras, baixo senso de responsabilidade, diminuição da atenção, falta às aulas, desempenho escolar insatisfatório, infrações e sintomas depressivos. A dependência era considerada um assunto tão complexo quanto desafiador. Alguns usuários abandonavam o hábito com medidas multidisciplinares simples. Outros precisavam de um tratamento mais estruturado e de longa duração para obter uma abstinência, nem sempre duradoura. Quanto mais explosivo e menos tolerante à frustação fosse o jovem, maior o risco de a experimentação conduzir ao uso contínuo.

No Atheneu, fiz um esforço necessário e consciente na busca desmensurada e incessante de novos conhecimentos e pelo desempenho fui reconhecido como bom aluno. Driblei o desejo irreprimível de experimentar qualquer substância psicoativa. Despertado por meus pressentimentos resultantes de processamentos de informações pregressas, resisti à sedução dos líderes comunistas. No entanto, apeado, não pude evitar que meu coração fosse invadido e enraizado por um grande amor, nem também foi possível disfarçar a dor profunda, angustiante e prolongada que nasceu do adeus.
Aracaju, 12 de junho de 2015

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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