Tassos Lycurgo 15 de julho de 2017

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Uma discussão interessante é a que concerne à seguinte pergunta: o que é afinal a terceira margem do rio? Ora, Guimarães Rosa, em conto homônimo, desenvolve a pergunta de forma magistral, mas, como era de se esperar, não oferece a resposta. Não o faz, talvez, porque ninguém possa fazê-lo, pois a própria resposta está lá, naquela margem, e nunca estará disponível aqui, para os que nunca se lançaram nas águas.

Com efeito, há algumas situações em nossas vidas que, de tão ímpares e singulares, não temos como delas falar. É como se o que vivenciamos ao enfrentá-las tivesse cargas semânticas tão profundas que apenas podemos nós mesmos ter real dimensão do que representam, enquanto para os outros, nada são senão palavras.

Um conhecido, que não via há muito tempo, encontrou-me neste último final de semana e contou-me que passou por uma situação bastante única. Certa vez, em uma praia deste estado, viu-se, juntamente com mais três amigos, na iminência do afogamento. De fato, dos quatro, um ficou. Quanto ao meu conhecido, embora tenha preservado a vida, esta não o preservou: fez dele outra pessoa, mudou-o completamente. Contou-me que orou a Deus para que o deixasse viver para que pudesse ter uma família, projeto o qual não estava nos seus planos, pois, como o Cubas, preferira mesmo nunca ter filhos. Agora, pelo que me disse, é o seu projeto principal, fruto do convencimento feito pelos desastres, sempre mais forte e eficaz do que o dos argumentos.

Ora, confesso que enquanto ele me contava com certo detalhe a situação por que passara, vinha-me à mente, mesmo antes da história, uma certeza: por mais que se esforce em contar cada momento, cada pensamento, cada dor, angústia e desespero, eu, daqui, não serei capaz de nem mesmo entender um centésimo da experiência por que ele passou. Era como se estivéssemos separados por um enorme rio, cada um em uma margem e, quando a conversa atingia tons profundos, ele se transportava para a terceira margem do rio, deixando-me sozinho, como um Hamlet que olha para Polonius e diz só ver palavras, palavras, palavras.

Um outro fator interessante é que, quando passamos por esses momentos realmente graves, sentimos algo tão profundo que custa-nos aceitar que outras pessoas também passaram por isso e mesmo outras tantas passarão. O meu interlocutor, ao me narrar a iminência de sua morte, que o marcou indelevelmente, talvez não tivesse em suas concatenações a idéia de que, naquele mesmo minuto, muitos são os doentes terminais, outros acabaram de se acidentar e mais alguns estão há meses nas camas dos hospitais.

Não se trata aqui de egocentrismo ou indiferença, mas sim da gravidade do assunto: é que cada um tem a sua própria terceira margem do rio e, quandoestamos lá, é-nos absolutamente inimaginável a concepção de que outras pessoas tiveram a mesma sina, a mesma desgraça, o mesmo infortúnio. Chegamos mesmo a achar que, de tão profunda que é a modificação em nosso ser, seríamos capazes de identificar toda e qualquer pessoa que houvera habitado a terceira margem, mas nada, logo vemos que exteriormente, por mais que digam ao contrário, os homens não se distanciam, são quase indistinguíveis. São mesmo, comparados às revoluções e correntezas que podem estar passando dentro de suas almas, verdadeiras calmarias quando vistos exteriormente.

É, amigo, o mundo é esquisito e as coisas graves são esquisitíssimas. Somente você teve e somente você terá acesso ao que passou. Nunca, por mais que eu queira, por mais que eu me esforce, por mais que eu o escute, poderei vislumbrar a faísca de um incêndio, a gota de um oceano, a verdade de todo o seu discurso. Não hei de desculpar-me por não entendê-lo, pois culpa não há, mas apenas limitação, que está em mim e em todos nós, homens e mulheres superficiais em grupo, mesmo que profundos na solidão da individualidade.

Publicado em Jornal de Hoje, Natal (RN), p. 2- 2, 03 e 04 de dezembro de 2005

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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