[email protected]
http://ronaldoteixeira.arteblog.com.br/
http://ronaldo.teixeira.zip.net/
http://lounge.obviousmag.org/espantalho_lirico/

Que situação terrível para apenas mais uma viagem a serviço. Pensou. Perto das quatro da tarde e ele ali, sozinho, diante de um carro que há poucos instantes era uma máquina, e agora, quebrado, não servia para nada. Mas o pior era se encontrar à beira de um estrada de terra do interior, sem sinais de qualquer movimento de automóvel por ali há pelo menos um mês. O quadro não era animador. Celular, nem pensar. Ali era impossível fazer uso dele. Tentou usar um laptop para acionar sua secretária para que ela providenciasse socorro, mas este também não ofereceu qualquer conexão. Era apelar para sorte e esperar que algum veículo cruzasse aquela pista antes qua anoitecesse. Olhou para o relógio e calculou que faltavam mais de cento e vinte minutos para a chegada hora maldita.

Pensou em caminhar. Mas olhou para trás e para frente e o que via era um deserto a perder de vista. Não adiantava tentar, pressupôs. Não chegaria a nenhum lugar habitado antes que a hora do terror viesse. Era torcer para que alguém aparecesse. Tratou logo de acender um cigarro. Em seguida outro. E mais outro… Até perceber que lhe restavam apenas dois cigarros. E isso já na segunda carteira do vício, que, sempre precavido, carregava no porta-luvas do carro. Já eram mais de cinco da tarde. A agonia começou a lhe invadir a alma. Não importava o cansaço físico da espera. Agora, além de toda a inquietação, teria que aprender a racionar o uso do cigarro. E as recordações vinham como correnteza, passando rápido e alucinando-o cada vez mais. E numa dessas idas e vindas das memórias, lembrou-se que sempre durante o tempo da hora indesejada se encontrava, ou dentro do seu escritório agarrado ao serviço e cercado de pesadas e negras cortinas por todas paredes, ou em seu apartamento todo acortinado, também trabalhando ou assistindo um filme predileto em algum canal de TV por assinatura. E, quando das viagens a negócios, calculava sempre dias antes de viajar, o roteiro e os hotéis ou cidades que poderia utilizar para não ver o pôr do Sol. Mesmo que atrasasse o seu serviço, fazia todo o esforço possível para se esconder do crepúsculo. Isso já acontecia havia quase duas décadas. Ele, que aos trinta e nove anos era um bem sucedido agente imobiliário, solteirão convicto, e de posse de bens que, para um homem da sua idade, já estavam de bom tamanho.

Por cerca de duas horas se viu perdido num turbilhão de memórias. Fragmentos vitais do seu passado. E se lembrou das suas brincadeiras do tempo de criança. E o terror foi lhe invadindo a alma. Os homenzinhos de plástico viviam numa sociedade perfeita nas suas solitárias brincadeiras. Agora, a origem do trauma também lhe vinha à mente. Tinha de quatro para cinco anos quando o seu pai foi embora, deixando ele e a mãe sozinhos. A solidão e o pavor daquele cruel instante da sua vida agora pareciam vivos e presentes, atormentando em dobro a sua existência. E a sua partida foi num crepúsculo, por isso ficou traumatizado. Quando criança, podia estar brincando animadamente que, ao chegar a hora do Sol se pôr, ele corria para o seu quarto e ali, debaixo da sua cama, continuava a brincadeira até a noite chegar. Olhava agora aquela estrada sem fim e parecia ver o seu pai indo embora, sumindo ao longe. A cena do terror voltava a ser real. Um choro interior acabou de lhe sufocar. E a vida reclusa que a sua mãe assumira após a partida do marido, se isolando de tudo e de todos, foi mais um – senão o mais importante fator – acentuador do seu trauma. Ela que se fechou para a vida até definhar quando ele contava com vinte e nove anos de idade. Lembrava agora também que por certo tempo andou pesquisando e fazendo tratamento com um psicanalista para resolver o seu problema, o que acabou não conseguindo. E, não achando um nome para a sua fobia, inventou o termo crepuscofobia que, para ele, era o puro horror ao crepúsculo.

Nunca mais viu seu pai. Se recompôs um pouco e acendeu o seu penúltimo cigarro. Ouvira falar que quando tinha vinte e dois anos, seu pai falecera em um acidente automobilístico. Justo quando começava a criar coragem para procurá-lo. Agora, soluçava forte. O homem voltava a ser uma indefesa e insegura criança. A dor nos olhos de sua mãe lhe marcara a alma profundamente. Já eram quase seis horas da tarde. O sol ia se pondo. O tormento não terminava, pelo contrário, aumentava ainda mais com o passar dos minutos. Acendeu o seu último cigarro. Um calafrio lhe arrepiou todo o corpo, partindo dos pés e indo até à cabeça, alcançando o último fio de cabelo. Não queria olhar para o crepúsculo. Mas tinha de ver se via algum carro vindo em sua direção. E, tremendo e falando coisas desconexas consigo mesmo, avistou um automóvel ao longe. Correu para tentar alcançá-lo, já que ele estava indo ao invés de vir. Nem sequer estranhou esse dado. Saiu em louca disparada atrás do veículo, gritando feito um louco. O pavor lhe dominara por completo. Em sentido contrário, um caminhão lhe alcançou primeiro e o atropelou.

Morreu ali, de forma trágica naquele estranho e ermo lugar, sob o crepúsculo. Um momento que para a maioria das pessoas era mágico, o instante poético, mas que ele costumava chamar de a hora da melancolia e da infinita tristeza.

Obs: Imagem enviada pelo autor

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]