Na minha adolescência, Itabaiana era uma cidade pequena, segura, serena e tranquila. Localizada no centro do Estado, numa região considerada sagrada por seus moradores, possuía clima ameno ao amanhecer, trazido por uma bruma fria e pouco densa, e muito sol e calor nas tardes de verão. A serra defronte, constituía o adorno principal da cidade. A população era constituída por agricultores, ferreiros, fogueteiros, alfaiates, sapateiros e pequenos comerciantes. Em expansão o número de estudantes, considerados rebeldes e resistentes aos costumes tradicionais, por vestirem e comportarem-se diferentes dentro da comunidade. Viviam como se não houvesse amanhã. Durante o dia, jogávamos bola no sítio de Júlio de Zé de Zefinha e botão nos salões da casa de seu Jubal, nosso quartel general de diversão e local onde planejávamos o próximo dia. Ao anoitecer, reuníamo-nos na Praça da Igreja para paquerarmos brotinhos bem esculpidos que despertavam sensações agradáveis nos jovens e faziam nossa pele ser tomada instantaneamente por brotoejas pruriginosas.

Por muitos anos, a Serra de Itabaiana e a Serra da Ribeira eram nossas opções favoritas para um dia descontraído. Sem grana para pagar transporte, o deslocamento de Itabaiana rumo ao sopé da serra era feito de carona, mas, parte considerável dos motoristas não parava o veículo quando percebia oito a dez adolescentes à na beira da BR. O excesso de gente tornava a carona difícil. Entretanto, uma criação fértil de Vladimir nos trouxe a solução: dois ou três ficavam na margem da pista em posição bem visível e os demais escondidos nas grunas das ribanceiras. No momento em que o ônibus ou o caminhão parasse, todos entravam de repente surpreendendo e assustando o motorista. A estratégia tornou a carona fácil e rápida e passou a ser executada rotineiramente em nossos passeios. O caminho a ser percorrido a pé da BR rumo ao local do banho, já fazia parte dos encantos do lugar: uma trilha serpentiforme margeada de árvores altas e verdes da mata atlântica, que escondiam o céu.

O Poço das Moças, um paraíso intocado pela mão do homem, com sua escorregadeira esculpida pela natureza a refletir a luz do sol, era uma exibição permanente de beleza, magia e espiritualidade, ao som ritmado do movimento das águas e do canto dos pássaros. Certo dia, quando deixávamos o Poço das Moças, o silêncio habitual foi quebrado pelo barulho do motor de um carro que se aproximava. Ocupamos as margens da trilha para o veículo passar em direção contrária ao nosso deslocamento. Um Jeep, transportando quatro policiais, sacudia-se de um lado para outro, pra cima e para baixo, por conta da originalidade da estrada de superfície irregular, cheia de pedras e cortada por pequenos riachos estreitos e de rasas lâminas de água. À medida que o Jeep afastava-se, seu barulho fugia progressivamente de nossos sentidos.

Não lembro de onde veio a sugestão de atrapalhar a missão da polícia e com pedras, paus e grandes bueiros, montamos uma barreira para interromper o trânsito  de veículos pelo riacho. Realizado o bloqueio, aceleramos os passos para evitarmos novo contato com a polícia, entretanto, para nossa surpresa, antes de atingirmos a BR, começamos a ouvir atentamente a grande distância, em nossa retaguarda, o barulho do Jeep. A intensidade crescente do som anunciava sua aproximação e maus momentos. O Jeep ultrapassou nossa comitiva e estacionou atravessado alguns metros diante de nós. Quando os policiais desceram as botas espirraram água e as fardas estavam sujas e molhadas até os joelhos. Ficamos estáticos em obediência automática à ordem emitida pelo sargento. O cabo aproximou-se para revistar minuciosamente, cada um de nós à procura de armas e maconha.

Bosco de Jubal, que nunca foi de frear na garganta o que explodia no cérebro, no instante em que o policial inclinou o tórax e devassava, com as mãos e os olhos, a mochila de Everton, fez uma intervenção brusca em tom debochado: “a comida acabou”. O cabo com expressão facial enraivecida, batia as mãos sujas de farofa e farelos de biscoito e nos assustou com olhar de maldade e ar de vingança. Naquela situação a gozação fora inadequada e inoportuna. Espantados e amedrontados, ficamos paralisados, surdos e mudos, esperando golpes e pancadas. A pilhéria poderia causar sensação de menosprezo à instituição e a incivilidade da polícia poderia vir à tona. Entretanto, o sargento não interpretou como deboche ou desafio à polícia, mas, apenas como uma brincadeira de um grupo de estudantes vivendo num clima de liberdade total. Abriu uma gargalhada franca e ruidosa, e com voz de comando lançou mão do poder de suas divisas, ordenando seus subordinados a entrarem no Jeep. Foram embora rindo. O cabo, mal encarado, esforçava-se para forjar feição de malvado mordendo os próprios lábios.

Estávamos sendo dirigidos para o inferno e ficamos embasbacados com a mudança brusca de comportamento da polícia. Embora existissem diferenças consideráveis e significativas de habilidades entre nós para responder ao mesmo estresse, era perceptível manifestações de alívio semelhantes em quase todos nós. Senti ocorrerem consideráveis mudanças em minhas sensações corporais: o coração batia tranquilo, respirava sem muito esforço, as mãos e os braços quase não tremiam, as pernas sustentavam melhor o corpo e a voz estava mais solta. No entanto, Luciano Siqueira não conseguia disfarçar o que sobrou de sua agonia, e ainda apresentava sinais visuais de ansiedade: estava pálido, suado e com as mãos trêmulas. Já Everton, com a gaguice mais acentuada e constrangido, carregava sua mochila colada ao corpo para esconder a bermuda molhada.

O caminho ainda era longo, mas, a resolução favorável do conflito, tornou o fardo mais leve. Guiados por Vladimir, caminhamos até a BR, onde empregamos a mesma tática para conseguirmos a carona de volta. O dia seguinte era mais um dia, da temporada de férias, à nossa disposição, para vivermos uma nova aventura em perfeita relação com a natureza. Aracaju, 11/05/2017

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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