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27/04/2017 12h49

Esta é a terceira vez que narro a paralisia que me invade quando tento ler um livro bom. Aconteceu com O mar, de John Banville. Com os livros do escritor e professor universitário paulista-pernambucano, residente em Aracajú, SE, Fernando de Mendonça (1984), Detalhe em H[1] e 23 de Novembro.[2] Sei que é um livro bom – já fui impactada anteriormente por suas faíscas –, mas insisto em permanecer paralisada, bloqueada, feito em um espelho de cristal.

Feito em um espelho de águas. Narciso paralisa diante de sua própria imagem. Eu cristalizo diante de Não há amanhã,[3] do escritor gaúcho Gustavo Melo Czekester (1976). Paralisei em 2016 com O homem despedaçado,[4] seu primeiro livro de contos, a ponto de nada conseguir falar, nenhuma palavra balbuciar após a leitura impactante.

Após a leitura inquietante que faço hoje do segundo livro de contos (são 30) de Czekster. Começo com “Não morto, apenas dormindo” e sinto a falta de palavras que prefigurei me preencher novamente, assim como aconteceu em “Um mundo de moscas” do primeiro livro.

“Então, eis o que era morrer – ficar o tempo todo sonhando com mortes, uma atrás da outra, sem receber ligações, esquecido. Através da janela, viu moscas infestando o pátio e, ao olhar o seu braço, gritou ao vê-lo se desfazendo em um mosaico raivoso de zumbidos, voltando a si quando bateu com a cabeça na janela, meu Deus, tinha dormido acordado!” (CZEKSTER, 2017, p. 14)

O braço se desfazendo “em um mosaico raivoso de zumbidos”, feito as moscas que criaram os seres humanos – afirmava Anton Lopez para mim em 2016.

“Anton Lopez expandiu a sabedoria de Montanelli e disse que os homens não só eram delírios como também foram criados pelas moscas. Isso explicaria o fato delas ajuntarem-se sobre cadáveres, dos quais retirariam pedaços microscópicos para construir outra pessoa.” (CZEKSTER, 2011, p. 19)

Eis o inquietante que encontramos em Czekster, Mendonça, Banville… Amabile.[5] “O inquietante”[6] de Sigmund Freud (1856-1939) amplamente analisado no texto de mesmo nome de 1919. O unheimilich  que transita entre o familiar e o desconhecido, entre a palavra e o silêncio, entre a vida e a morte. Freud analisa o termo desde a sua etmologia em várias línguas – inclusive na versão brasileira traduzida do inglês da Standart Edition aparece como “O estranho” –, quanto em um texto do escritor alemão Ernst Theodor Amadeus Hoffmann (1776-1822), mais conhecido por E. T. A. Hoffmann, “O homem de areia” (1816).

Em “O homem de areia”, Hoffmann narra a história de Natanael, que é assombrado, desde a infância, com a suposta existência de um homem de areia que arranca os olhos das crianças e dá para alimentar seus filhotes, feito fosse uma espécie de abutre, ou coruja. Em “O inquietante”, Freud alerta para o complexo de castração no personagem principal, Natanael, ao mesmo tempo que me faz lembrar de outro texto seu chamado “Os arruinados pelo êxito”,[7] que aparentemente pertence ao mesmo volume (XIV) das obras completas do pai da psicanálise, no qual analisa a histeria a partir do sucesso, e não do fracasso – como normalmente acontece –, investigando as peças teatrais “Macbeth”, de William Shakespeare (1564-1616), e “Rosmersholm”, de Henrik Ibsen (1828-1906).

Podemos encontrar este “inquietante” em textos de Franz Kafka, Thomas Mann, Friedrich Dürrenmatt, mas também dos mais próximos – mais próximos no duplo sentido do tempo e do espaço – Fernando de Mendonça, Luís Roberto Amabile, Alexandra Lopes da Cunha[7]… e também nos contos do escritor e advogado gaúcho Gustavo Melo Czekster.

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(1) MENDONÇA, Fernando de. Um Detalhe em H. Recife: Grupo Paés, 2012. Veja: http://www.patriciatenorio.com.br/?p=4809

(2) MENDONÇA, Fernando de. 23 de Novembro. Recife: Grupo Paés, 2014. Veja: http://www.patriciatenorio.com.br/?p=5923

(3) CZEKSTER, Gustavo Melo. Não há amanhã. Porto Alegre: Zouk, 2017.

(4) CZEKSTER, Gustavo Melo. O homem despedaçado. Porto Alegre: Dublinense, 2011. Veja: http://www.patriciatenorio.com.br/?p=6683

(5) Vide em outro post do mês de abril, 2017 no blog de Patricia (Gonçalves) Tenório: http://www.patriciatenorio.com.br/?p=7359

(6)  FREUD, S. “O inquietante”, in: Obras completas vol. XIV, São Paulo: Cia das Letras, 2010, p. 328-373, [FREUD, S. “Das UNHEIMLICHE”, in: FREUD, S. Der Moses des Michelangelo, Frankfurt a. M.: Fischer, 1992(1996), p. 135-172].

(7)  FREUD, S. “A história do movimento psicanalítico”. Volume XIV. Comentários e notas: James Strachey. Tradução sob Direção-Geral e Revisão Técnica: Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974.

(8) Vide: http://www.patriciatenorio.com.br/?p=6963

Obs: Imagem enviada pela autora

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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