“Por isso, é necessário fazer-nos indiferentes a todas as coisas criadas” (EE 5)

Toda a dinâmica e finalidade dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio visam a buscar e encontrar a vontade de Deus para a pessoa. Contudo, não podemos negar serem tais Exercícios também uma escola de oração e uma pedagogia da liberdade. Pois tais realidades estão implicadas sem mais na finalidade primeira. Sem vida de oração e sem certo nível de liberdade (“determinar de su persona”) ninguém consegue realizar o objetivo do retiro inaciano.

Não pretendemos elaborar uma reflexão sobre a liberdade humana ou mesmo apresentar uma exposição sobre a liberdade cristã, mesmo que tais noções estejam pressupostas neste estudo. Nosso objetivo é de ordem prática. Interessa-nos, sobretudo fazer com que esta realidade seja realmente vivida por todos nós. Deste modo, a teoria só entra na medida que realmente sirva a tal finalidade. Além disso, é fundamental que deixemos emergir a concepção inaciana de liberdade, presente no texto dos Exercícios Espirituais.

Sua importância aparece por vir mencionada já no início deste livro, no assim chamado Princípio e Fundamento. Aqui se trata não só de oferecer ao cristão uma visão global de sua fé, mas especialmente de esclarecê-lo sobre a necessidade de uma atitude básica, para que a experiência a ser iniciada possa ser levada a cabo. A mesma exigência vem formulada na anotação quinta (EE 5): entrar nos Exercícios com ¨grande ânimo e generosidade¨, oferecendo a Deus ¨todo o seu querer e liberdade¨.

Contudo, só podemos ser livres diante da realidade que nos rodeia se nossa liberdade não se deixar prender por esta realidade, coisas e pessoas, idéias e sonhos, projetos e ambições. Isto só poderá acontecer se nossa liberdade estiver voltada para uma realidade superior que de tal modo a polarize que seja capaz de relativizar e tornar secundária qualquer realidade criada. De fato, já a filosofia ensina que o ser humano é livre porque o dinamismo de sua liberdade tende para o Bem Infinito, já que bem finito algum se mostra capaz de saciá-lo em seu desejo de felicidade. Do mesmo modo que sua inteligência não se detém num objeto limitado, mas se abre para tudo o que seja realidade. Devido a este dinamismo voltado para a totalidade da realidade e que lhe é intrínseco, pode a inteligência ultrapassar o objeto finito como finito e assim distingui-lo de outros, compreendê-lo e defini-lo. A sede da Verdade Última e da Felicidade Perfeita, a sede de Deus, é intrínseca ao ser humano, está presente em sua inteligência e em sua liberdade.

Entretanto, Santo Inácio era um homem prático. Seu objetivo era fomentar no exercitante uma atitude de disponibilidade diante da liberdade de Deus. Nossa reflexão anterior baseada numa antropologia filosófica, ainda que lhe fosse conhecida, não gozava da mesma força motivadora provinda do setor afetivo. Deste modo ele apresenta, previamente ao imperativo da indiferença, o gesto primeiro de Deus que nos chama à existência para participarmos de sua vida feliz. Nascemos devido a um gesto de amor da parte de Deus, que vem ao nosso encontro, que se entrega a nós na pessoa do Filho e do Espírito, para nos introduzir na família trinitária e, assim, fazer-nos eternamente felizes.

Assim, o ser humano deve se fazer disponível não para uma liberdade divina abstrata e desconhecida, mas para um Deus que o ama, que quer o seu bem, que vem ao seu encontro para salvá-lo. Todo o mundo criado, toda a humanidade, e nós aí incluídos, temos aqui a razão última de nossa existência. O querer a salvação da humanidade perpassa toda a criação do universo e da própria humanidade. Este querer salvífico é a razão última de nossa própria existência. Ao acolhermos livremente o amor primeiro de Deus, realizamos o objetivo último de nossas vidas, correspondemos à intenção divina e alcançamos a felicidade infinita pela qual anseia todo o nosso ser.

Santo Inácio apresenta esta mesma visão cristã do mundo e do ser humano com a teologia e a linguagem disponíveis em sua época: “O ser humano é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus nosso Senhor e, assim, salvar-se” (EE 23). Mesmo que mais sóbria e concisa, ela precede o imperativo da indiferença. Ele ainda acrescenta o sentido de todas as coisas que nos rodeiam como tendo sido criadas para o ser humano. Assim, a pessoa deve usá-las tanto quanto a ajudem para chegar à sua felicidade última.

Contudo, o tema da liberdade não se limita ao início dos Exercícios. Pelo contrário, ele se faz presente em meditações-chave do retiro inaciano. Na meditação do Reino de Deus, seja no segundo preâmbulo (EE 91: pedir a graça de ser “pronto e diligente para cumprir sua santíssima vontade”), seja no colóquio (EE 98: “quero e desejo…imitar-vos em passar todas as injúrias, todas as afrontas e toda a pobreza”) se trata, no fundo, de dilatar e fortalecer a liberdade do exercitante para responder devidamente à vontade de Deus. A mesma finalidade aparece nos colóquios da meditação das duas bandeiras (EE 147), bem como na meditação dos três tipos de pessoas (EE 149-156), que termina com uma nota preciosa para se alcançar a liberdade pretendida, bem no estilo de Santo Inácio: “Ter presente que, quando sentimos afeto ou repugnância à pobreza material, não estamos indiferentes à pobreza ou riqueza. Muito aproveita ao exercitante, para extinguir esta afeição desordenada, pedir nos três colóquios, embora contra a sensualidade, que o Senhor o escolha para a pobreza material” (EE 157). Na mesma linha está a consideração sobre os três modos de humildade (EE 164-168). O segundo modo de humildade (EE 166) é pré-requisito para se entrar na eleição, conforme o Diretório Autógrafo (cap. 3, n.17). O exemplo de Jesus Cristo, pobre e injuriado, deve mover o exercitante a querer imitá-lo e assemelhar-se a ele, desobstruindo mais sua liberdade para acolher o que for a vontade de Deus (EE 167). Esta mesma preocupação em liberar a liberdade do exercitante volta no preâmbulo para se fazer eleição (EE 169), onde se insiste sobre a intenção de acolher primeiramente a vontade de Deus (fim) e não escolher de antemão possíveis bens criados (meios).

Toda a segunda semana, através da contemplação dos mistérios da vida de Jesus Cristo, reforça a pedagogia inaciana da liberdade. Pedir nos colóquios maior conhecimento interno de Jesus Cristo para mais amá-lo e segui-lo (EE 104) significa querer se assemelhar àquele cuja vida é a expressão perfeita deste acolhimento da vontade de Deus, cuja história é a história de uma liberdade totalmente entregue à liberdade do Pai. A entrega de Jesus a seu Pai se constituiu ao longo de toda a sua vida, sendo o material desta entrega os acontecimentos e os desafios cotidianos que enfrentava. Através da oração e do discernimento buscava sintonizar com a vontade de Deus. Esta sua obediência perfeita tem seu desenlace no mistério pascal (terceira e quarta semanas), que confirma a opção (eleição) do exercitante através do desfecho da vida de Cristo. “Pedir o que quero: graça de sentir intensa e profunda alegria por tanta glória e gozo de Cristo Nosso Senhor” (EE 221). Até a contemplação para alcançar amor visa à entrega mais perfeita da liberdade, conforme vem expresso no sempre importante segundo preâmbulo: “pedirei conhecimento de tanto bem recebido, para que, inteiramente reconhecendo, possa em tudo amar e servir à sua divina Majestade” (EE 233). O “Tomai, Senhor, e recebei toda a minha liberdade, minha memória e entendimento e toda a minha vontade” (EE 234) retoma o objetivo de fundo do Princípio e Fundamento deixando aparecer a circularidade dos Exercícios inacianos: estamos sempre a caminho quando se trata da liberdade cristã.

Neste ponto de nossa reflexão já podemos entender a concepção inaciana da existência cristã. Trata-se de um processo que nos acompanha por toda a vida. Pressupõe que Deus seja livre e que possa irromper em nossa vida de modo imprevisto, levando-nos a novos caminhos, que é um Deus que supera sempre nossas expectativas e planejamentos, um Deus semper maior. A tibieza dos “bons” que buscam se instalar nas conquistas passadas significa, no fundo, perda de liberdade. A vida do cristão é sempre uma caminhada aberta ao futuro, construída pelas interpelações de Deus e pelas respostas do ser humano. A vontade de Deus não é uma norma fora do tempo, sempre a mesma, mas uma realidade que se manifesta na história de cada um, através das vicissitudes e dos desafios da vida. Todas as anotações e regras expostas pelo santo basco visam a possibilitar ao exercitante reconhecer esta contínua atuação salvífica de Deus em sua existência. Esta deve ser percebida, acolhida e realizada através da liberdade humana. Assim fazendo a pessoa se torna mais livre e, portanto, com maior capacidade de sentir, interpretar e realizar a vontade de Deus em sua vida. A pedagogia inaciana consiste, portanto, em fazer crescer a sintonia da nossa liberdade com a liberdade de Deus através do investimento da nossa liberdade. Esta conclusão deve ser enfatizada, pois não há outro meio para se chegar à liberdade cristã. Esta atuação de Deus acontece através da ação do Espírito Santo, ação esta mais sentida do que conhecida (Rm 8,14-16; Gl 4,6) e com a qual devemos sintonizar em nossa caminhada existencial (Gl 5,25: “Se vivemos pelo Espírito, andemos também sob o impulso do Espírito”). Aí então experimentamos a verdadeira liberdade. “Onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade” (2Cor 3,17). Vida espiritual, ou vida segundo o Espírito, é uma vida de atuação e de crescimento da própria liberdade.

Por outro lado, Santo Inácio sabe muito bem que nossa liberdade não existe sozinha, gozando de total autonomia. Pois somos também seres corporais e seres que não podem prescindir do entorno social onde vivem. Nossa liberdade é sempre uma liberdade condicionada por estar encarnada num corpo e num contexto social, de onde ela responde a Deus. Tanto as carências e as necessidades corporais, psicológicas e morais, quanto os fatores socioculturais exercem forte influência sobre ela. Podem ajudá-la no seguimento de Cristo, como podem estorvá-la em sua atuação. Santo Inácio se mostra consciente desta realidade ao apontar no Princípio e Fundamento alguns destes condicionamentos: vida breve, enfermidade, pobreza e desonra (EE 23). Toda a sua pedagogia procurará capacitar o cristão a exercer uma distância crítica com relação à pressão provinda de suas lacunas pessoais ou do seu contexto social, como vimos anteriormente. Observe-se ainda que necessidades de cunho pessoal e envolvimento sociocultural se implicam mutuamente.

Se quisermos ser fiéis à pedagogia inaciana da liberdade devemos saber captar a ação do Espírito no concreto e no cotidiano de nossas vidas e não apenas nos “reduzidos espaços religiosos” da nossa agitada existência atual. E não só saber captar as moções do Espírito Santo, mas, sobretudo, traduzi-las em atos. Isto acontece seja por um querer afetivo enfatizado nos colóquios acima mencionados, seja por opções concretas em nosso dia a dia. Em ambos os casos não podem ser eliminados os condicionamentos de nossa liberdade. Sobretudo em nossos dias, quando representam certamente um dos maiores obstáculos à vida cristã, devido à crise sociocultural onde estamos mergulhados. Daí a urgência de uma reflexão explícita sobre os mesmos, embora sem pretensão alguma de sermos completos.

Os condicionamentos tanto ajudam como estorvam a nossa liberdade. Pois ela sempre age a partir deles. Não podemos deixar de fora o nosso eu real ou o contexto concreto onde vivemos para responder a Deus. Devemos, isto sim, aproveitar o que nos ajuda e neutralizar, na medida do possível, o que nos estorva. Os autores distinguem condicionamentos psicológicos, socioculturais, morais e mesmo religiosos. Não só uma neurose bem comportada, ou um preconceito social, ou um egoísmo de fundo elegantemente administrado podem comprometer nossa liberdade, mas também concepções teológicas erradas ou mal entendidas. Tais condicionamentos, mesmo distintos, se implicam mutuamente, de tal modo que a mudança de um deles não deixa de influir nos outros, positiva ou negativamente. Tratar a todos eles explicitamente ultrapassa o nosso objetivo, pois exigiria mais tempo de exposição e dispersaria nossa atenção para questões diversas. Vamos, pois, nos limitar à situação sociocultural que hoje vivemos.

Experimentamos em nossos dias não mais uma sociedade tradicional caracterizada por uma visão da realidade dominante e compartilhada por todos, fundamentada numa religião e responsável pelos valores e ideais de seus membros. A sociedade moderna é pluralista, contendo em si diversas fontes de sentido que apresentam diferentes compreensões da vida e de seus valores, relativizando-se e enfraquecendo-se mutuamente. Além disso, as mudanças socioculturais se sucedem numa velocidade vertiginosa, a tal ponto que as instituições não conseguem acompanhá-las. Escola, família, Igreja, instituições democráticas, saúde pública, experimentam certa crise por não conseguirem responder devidamente às questões nascidas deste novo contexto. Mesmo o cristão nem sempre consegue se orientar pelas tranqüilas e sólidas referências do passado, sentindo então uma inédita dificuldade em investir sua liberdade, em se comprometer mais seriamente, em saber renunciar em vista de uma meta superior. Componente importante para compreendermos a atual crise ética e a omissão de compromisso nas novas gerações.

Sem dúvida alguma é o individualismo a característica mais marcante da atual cultura. Em sua vertente emotiva procura sempre a felicidade própria, a auto-satisfação, a realização pessoal, mesmo às custas dos outros, vistos então numa perspectiva egocêntrica como meios a serviço do próprio ego. Em sua vertente econômica o individualismo busca sempre vantagens materiais, lucros, acúmulo de bens, respaldado por uma sociedade que valoriza o que a pessoa possua, e não o que ela seja. A enorme quantidade e variedade de bens oferecidos aliada à sofisticada técnica de propaganda levam muitos de nossos contemporâneos a se escravizarem ao consumismo. Este quadro sociocultural não deixa de ter forte influência na liberdade do cristão. Já profetizava Karl Rahner, decênios atrás, que entrar num Shopping e comprar apenas o necessário seria uma autêntica ascese para o cristão do futuro.

Podemos notar também em nossos dias uma profunda crise de fé, que não exclui sentimentos ou crenças religiosas, vividos de modo light. Primeiramente porque nossos contemporâneos são, de tal modo, bombardeados diariamente com novas informações e novas práticas, com novas possibilidades de bens e de experiências, que se sentem impotentes para alcançar uma compreensão global de todo este acervo, compreensão esta capaz de orientá-los para discernir o que seja certo ou errado, o que seja bom ou mau. Vivemos hoje a partir de fragmentos da realidade, que conseguimos captar, entender e empregar como chão para nossas opções. Daí pairar em nossos dias certo ceticismo com relação a investimentos da liberdade a médio e longo prazo, seja no campo afetivo, político, profissional ou religioso. O crescente materialismo de uma sociedade de afluência unido a forte secularização da cultura acabam por minar a fé na outra vida. Conseqüentemente, se busca aproveitar ao máximo esta vida, experimentando de tudo o que se apresenta e vivendo um presente esquecido do passado e despreocupado do futuro, como já se observa entre as jovens gerações.

Certamente poderíamos elencar outros desafios hodiernos à indiferença inaciana. Compete a cada um completar estes breves exemplos através de sua experiência pessoal. Mais importante aqui é tentar responder a tais desafios dentro do espírito de Santo Inácio. E esta tarefa é nossa! Poderíamos formular uma questão a ser trabalhada nos grupos: como enfrentamos estes obstáculos de cunho sociocultural em nossa vida cristã.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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