Na história do dono de moinho que, ante a insistência de um Frederico, entre tantos que ocuparam o trono da Prússia, ao ameaça-lo de derrubar o moinho, porque o dono não queria vende-lo, para no seu lugar passar uma estrada, teria dito que o imperador derrubá-lo-ia não fossem os juízes de Berlim. Bom, então já havia juízes em Berlim que o império respeitava. Hoje há também mendigos, e, mendigos que interpelam as pessoas, ou seja, os turistas, perguntando se falam inglês. Com a resposta positiva, mostram um papel manuscrito, evidentemente a pedir esmola. Eu vi duas mulheres, com o papel na mão, fazendo a mesma pergunta, como vi, em Lisboa, mulheres vendendo leque e implorar ajuda. Também há mendigos na Europa.

Contudo, os mendigos europeus, pelo menos os que vi, portam, até na dignidade da miséria, uma atitude diferente dos nossos. Nada de cuia, nada do pedido de esmola pelo amor de Deus, que muito ouvi em Itabaiana de vitimas do destino, como cegos e aleijados. O mendigo europeu se ajoelha e se curva, a cabeça baixa, como se fosse uma penitência, e ali fica parado, chapéu no chão, a espera de um adjutório de quem passa. Assim vi em Barcelona, e, recentemente, em Praga, nas ruas tortas e ladeiradas do centro histórico, próximo ao castelo real. Em Lisboa, reconheci na Rua Augusta um mendigo, de cadeiras de rodas, um cachorro amarrado na cadeira, o mesmo que vi a uns três anos atrás, ali plantado, a suplicar implicitamente óbolo a patrícios e turistas.

Na Av. Beira-Mar, dois registros. O primeiro, da mulher, que na sexta-feira, lá, numa esquina, faz ponto, com o retrato de uma pessoa doente como motivo para pedir auxilio. O segundo, de um velhinho que ficava, no meio dos carros, rogando algum donativo, dormindo numa cabana de papelão no canteiro ao lado do canal. A família vinha sempre buscá-lo. O velhinho recebia suas moedas, as trocava por cédula numa farmácia, depois ia comprar pão e queijo numa padaria, transformando os degraus de um edifício em sua mesa de jantar. Nunca mais apareceu. Nas feiras, há sempre alguém batendo no ombro a solicitar donativo. O compadre Luiz Carlos, quando abordado, pergunta se o dinheiro pedido é para comida ou para comprar cachaça. A resposta é imediata: é para comer, meu amigo. E aí ele, passando uma cédula qualquer, proclama: se fosse para beber, a nota seria mais alta.

De tudo que vi, aqui, ali e acolá, nada se compara com a cena que me deparei, em Lisboa, na Baixa, vindo d´A Brasileira, onde Fernando Pessoa, em bronze, permanece sentado, cadeira vazia ao lado, para a alegria da pose de turistas, muitos dos quais nunca leram dele um só poema. Pois bem. Dois homens, barba para fazer, roupa suja, cara de quem não sabem o que é um banho há muito tempo, sentados na calçada de uma casa comercial, a alegria estampada na fisionomia, indiferentes a miséria vivida, cercados de vários objetos que não me lembro, colocaram, cinco cartazes, não tanto ostensivos, cada uma trazendo um aviso, ou pedido. A frente de cada papelão, a caixa sem tampa, destinada a receber as moedas de euro.

E o que escreveram nos papelões? Bem: Para cerveja. Para vinho. Pelo menos sincero. Para whisky. Para ressaca. Tirei o chapéu. (31.08.13)

Obs: Publicado no Correio de Sergipe
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras.     

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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