(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio)
agape.usuarios.rdc.puc-rio.br

            As águas subiam e as pessoas fugiam.  Entravam em barcos improvisados, deixando para trás o que fora construído ao longo de toda uma vida. Em Várzea do Uma, lugar onde o rio se encontra com o mar no município de São José da Coroa Grande, Zona da Mata Sul de Pernambuco o domingo, dia do Senhor, foi de medo e desespero.  A chuva intensa chegou e a água subiu sem parar.

            Rivânia, de oito anos, tremeu de medo e se dispôs a partir.  Foi quando a avó, Maria Ivânia, lhe disse que entrasse na casa alagada e salvasse o mais importante.  A menina não titubeou.  Agarrou a mochila que levava para a escola, com livros e material escolar, e subiu na embarcação.  Ajoelhou-se e rezou, acompanhada pelos avós e o que considera mais precioso: seus livros.

            A foto de Rivânia ajoelhada e abraçada à mochila onde guardava seu tesouro chama a atenção.  Como uma criança de oito anos não prefere levar consigo roupas ou brinquedos, ou a boneca predileta, ou fotos de pessoas queridas.  Por que livros? Por que o mais importante eram os livros?

            A resposta da menina chega a ser mais significativa que seu gesto.  Perguntada sobre por que os livros precisavam ser salvos da enchente, respondeu: “Porque eles são o meu futuro.”

            Rivânia ainda não sabe ler, mas já está na escola e sabe que a leitura é o único caminho para o futuro de uma vida com sentido.  E persegue esse futuro que desde que nasceu parece tão longínquo à sua vida de pobreza, criada pelos avós, neta de um pescador que perdeu a rede, meio de vida, na enchente. Ela intui que o meio de trazer esse futuro para o terreno das possibilidades é o estudo.  E a ele se agarra com unhas e dentes.

            O gesto da menina e sua foto na embarcação abraçada aos livros chamou a atenção das autoridades.  A família recebeu a visita do governador do estado, que foi ao município de Várzea do Una pela primeira vez.  Atraiu também os olhares de outros pontos do país e do exterior.  De todos os lugares chegaram livros para Rivânia, dos quais muitos foram doados a sua escola.

            O espanto maravilhado de todos é como uma menina analfabeta e pobre pode realizar um gesto de tal alcance e proferir uma sentença de tamanha sabedoria: salvar o mais importante é salvar os livros, que são o futuro. A família de Rivânia recebeu ajuda e a comunidade onde vivem também.

            Enquanto isso, em nosso país, outras meninas e meninos como ela são conquistados por outras coisas e trilham outros caminhos: as drogas, a mendicância, a situação de rua.  E as autoridades estão preocupadas em projetos eleitoreiros de curto prazo e não priorizam a educação em seus investimentos.

            Menos mal que existem os pequenos profetas que não deixam morrer a esperança.  Enquanto existirem crianças como Rivânia, que salvam livros porque sabem que assim garantem o futuro seu e de muitos, é sinal que não morreu a possibilidade de se construir uma nação digna.  É sinal também de que a vocação do ser humano sobre a terra leva em si a centelha do Criador. Por isso, por pior que seja a situação em que se encontre, sobreviverá a governos iníquos e negligências criminosas.

            Testemunha e guardiã do futuro, a pequena Rivânia abraçada a sua mochila cheia de livros é uma inspiração e uma luz para todos aqueles e aquelas que creem que a educação é a prioridade número um de um povo que se move por desejos, projetos e utopias, e não por rasteiras e iníquas ambições.

Obs: Maria Clara Bingemer é autora de “Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros.

Copyright 2017 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato:  [email protected]   

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]