(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio)
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Podiam ser seus filhos, podiam ser meus netos, nossos netos.  Todos que estavam ali em Manchester quando o homem bomba se explodiu no estádio onde 21 mil pessoas, a maioria jovens e até mesmo crianças, assistiam ao show da cantora Adriana Grande. De repente, um ruído ensurdecedor se fez ouvir, uma luz forte cortou o espaço e os assentos do estádio tremeram.  O saldo foi de 22 mortos e 59 feridos.

O Estado Islâmico reivindicou a autoria do ataque e prometeu outros.  Diante das crianças e jovens mortos, de suas famílias, de todas as vítimas, a indignação não pode deixar de tomar conta de nós.  Podiam ser nossas crianças, nossos jovens.  E mesmo não sendo.  São as crianças de alguém que hoje chora inconsolável como Raquel na Bíblia.  No entanto, há outro sentimento que convive com a indignação: a compaixão.

A palavra compaixão talvez seja uma das menos entendidas de todas as línguas. Em geral, é associada à pena, piedade, comiseração. Ora, não há nada mais alheio ao sentido visceral dessa palavra forte e ardente – compaixão – do que essas edulcoradas e humilhantes definições. Compaixão é sofrer com, padecer solidariamente e em comunhão. Tem a ver com justiça e restaurar dignidades atingidas e cruelmente vulneradas.

Compaixão é o sentimento que caracteriza o ser humano diante de seus irmãos em humanidade que se encontram desumanizados pela pobreza, a violência e a opressão. É o que move o coração dos justos diante da iniquidade e do sofrimento do outro. É o que nos enche do desejo de comungar com a dor do outro e fazê-la nossa. Perante as vítimas inocentes da injustiça, dentro de um ambiente de globalização e pluralismo como é o nosso hoje, existirá um critério de entendimento e convivência irrevogavelmente reconhecido e vinculante para todos e, neste sentido, capaz de ser reconhecido como verdadeiro?

Parece-me ser compaixão a palavra chave para encontrar a resposta. Pois ela é capaz de suscitar a memória subversiva das vítimas para fazê-las de novo ativas na história. É este conceito-atitude que procura exprimir a necessidade de o cristianismo abandonar a sua ameaçadora autoprivatização acomodada. Compassio não é um sentimento a partir de cima ou de fora, mas a percepção do sofrimento alheio, no qual se toma parte e que eticamente obriga. Para esta compaixão, vale o imperativo categórico: “para, escuta e olha”.

A compaixão é a capacidade de partilhar o sofrimento do outro. Com efeito, o mais terrível do sofrimento não é tanto ele em si, mas a solidão que nele se experimenta. Por isso, alguns teólogos contemporâneos tratam de elaborar uma memoria passionis (memória da paixão) como categoria de base de uma teologia em espaço público. Trata-se de recordar – lembrar com o coração – os sofrimentos dos outros; fazer um rememorar público do sofrimento alheio, incorporado de tal maneira ao uso público da razão que a esta imprima um selo.

A compaixão decorre, portanto, da universalidade da experiência do sofrimento. A partir daí, entende a teologia contemporânea a necessidade de uma nova teologia política que contribua vigorosamente para uma Igreja compassiva, funcionando a “memoria passionis” como recordação provocadora que fundamenta uma nova ética. Os que sofrem, as vítimas de todo tipo, teriam então uma autoridade. E esta autoridade seria a autoridade interior de um ethos global, de uma moral mundial, que obrigaria todos os homens anteriormente a qualquer ideologia, a qualquer entendimento. Uma moral que, por conseguinte, não pode ser posta de lado ou relativizada por nenhuma cultura e por nenhuma religião, ou igreja.

Toda verdadeira mística, hoje, sobretudo após Auschwitz, não pode deixar de ser inspirada por esse ethos. E uma política inspirada por este ethos seria mais e diferente de uma pura executora das orientações do mercado, da técnica e de suas opressões objetivas em nossos tempos de globalização. Seria mais humanizante e libertadora. Aquilo que a teologia política explicitará na Europa do pós-guerra, que a teologia da libertação tematizará na América Latina a partir dos anos 1970, muitos já viviam e vivem em suas vidas e experiências espirituais, explicitando-o em sua práxis. Referimo-nos aqui a fenômenos como o dos padres operários, na Europa dos anos 1950; a pessoas como Madeleine Delbrel, apóstola das ruas de Paris; a Simone Weil, filósofa agnóstica que a partir da dureza do trabalho da fábrica vivido em seu corpo encontra Deus e Jesus Cristo, já nos anos 1930, antes mesmo dos horrores da guerra. E a tantos outros e outras que já viviam e narravam o que a teologia posteriormente elaborou em estilo articulado e rigoroso.

É possível, portanto, afirmar que o critério universal da condição humana se encontra na interpelação feita pela pobreza e a dor do outro e pela compaixão que ela origina. Todo este movimento não é apenas ético, mas também místico – ou melhor, é místico porque ético e vice-versa – uma vez que na Revelação bíblica e no Cristianismo ambas as coisas não se dissociam. Só encontrando aí sua fonte de inspiração primeira e iniludível pode a Teologia não ser infiel à sua identidade e à sua missão.

A dor das vítimas e seus familiares enlutados em Manchester enquanto cantavam e vibravam ao som da música nos inspira esses dois sentimentos: a indignação que deseja que se tome uma medida para que acabe essa barbárie  Mas, sobretudo, a compaixão que chora com as vítimas na impotência de poder fazer algo mais eficaz ou melhor.  E na compaixão a chama da esperança se mantém, bruxuleando, viva apesar de tudo.

Obs: A teóloga é autora de “Simone Weil – A força e a fraqueza  do  amor” (Ed. Rocco).

Copyright 2017 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato:  [email protected]   

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