O espetáculo, antes de mamãe colocar a comida na mesa, era papai descascando laranjas. Ao todo, cinco, número dos habitantes da casa. De faca afiada, ia tirando a casca, com tanta maestria, que esta ficava completa. Nenhuma casca lhe traia. Depois, com as cinco enrodilhadas na mão, se levantava, porque a cena continuava, para o ponto máximo. Ou seja, jogar uma por uma nas ripas do telhado, onde ficavam firmes, para  envelhecer e secar.  Tudo tinha uma explicação lógica. O povo antigo sabia suprimir suas necessidades, descobrindo na casca da laranja, depois de seca, um tipo de combustível. A casca era, depois, usada para acender o fogão de lenha. Não tínhamos ainda o fogão a querosene, que chegou primeiro, nem tampouco sabíamos o que era fogão a gás. A casca de laranja secava no meio da estaca, se igualando ao álcool. Daí o cuidado de papai de aproveitar toda a casca, na apresentação de uma cena que enchia meus olhos. Não consigo ainda hoje descascar laranja para o espetáculo da infância, como um bom fantasma, não retornar aos meus olhos.

Já vovô Aristides procedia de modo diferente. Nunca o vi descascar a laranja como papai fazia. Ao contrário. Cortava a fruta em quatro pedaços, na horizontal e na vertical, devorando um por um, a ponta do nariz, – que era grande, herança de sua mãe, d. Maria Francisco do Espírito Santo, que não conheci, marca que algumas netas tiveram de carregar, – encostando na laranja, e, ele, bem na dele. Na rua, na frente dos campos de futebol, ou nas praças, eu parava para ver o vendedor de laranja, a carroça cheia da fruta, descascar a laranja rapidamente, pedaço por pedaço da casca caindo, sem feri-la e sem aproveitar a casca, arrancada em pedaços diminutos, a sujar ainda mais o chão. Nada comparado com o espetáculo que papai comandava em casa.

Até aí, tudo bem. A laranja é a laranja, qualquer que seja o modo de descascá-la.

O chato é a presepada que lhe fizeram depois, proceder que considero imperdoável. Deveriam ter escolhido outra fruta – por exemplo, a do mandacaru, que não é comercial em nossas bandas. O juá – que se reproduz em qualquer terreno como uma bonita praga – poderia ser invocado. Ou, até a amêndoa, cujos frutos também são excelentes reprodutores. Mas, para a infelicidade da laranja, esta foi a escolhida, e logo, no campo penal. Se meu pai fosse vivo ainda, se espantaria ante os noticiários de fulano e sicrano servirem de laranja para pessoas ocultas, como forma de esconder um crime. Ora, é por que laranja? Logo a laranja, de múltiplas vitaminas, habitante obrigatória das casas, de restaurantes e de bares, vendidas na rua em sacos por dez reais. Pois é a realidade. Me arrisco a um palpite. De menino, recordo colocar pouca farinha num prato e passar uma banda da laranja por cima, a título de sobremesa. A farinha era absorvida pela fruta, dando um sabor diferente da mistura feita. Talvez, no delito, tenham encontrado uma semelhança com essa atitude. Talvez. Como sempre afirmo e defendo, o que seria do mundo não fosse Itabaiana?! (26.12.14)

Obs: Publicado no Correio de Sergipe
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras.     

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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