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Meus queridos amigos
A primeira vez que assisti a uma transfusão de sangue fiquei emocionado.

Era transfusão de braço a braço. Um doente pálido, cadavérico, recebia sangue de um jovem sadio e robusto. Desde este dia sonho com um aparelho que permitisse a transfusão de sofrimentos.

Ali vai, suando, puxando uma carroça cheia de areia, um homem já quebrantado pelos anos. Que desejo de pedir a ele que me permita ao menos ajudá-lo a não carregar a carroça sozinho! Mas o meu sonho mesmo era, pelo pensamento e pelo coração, de tal modo chamar a mim o peso da carroça que, para o senhor idoso, coberto de suor, mal alimentado, a carroça se tornasse levinha, levinha!

Um pouco adiante está uma senhora sentada no chão, rodeada por três filhos menores, além do mais novo, que lhe suga o seio murcho e sem leite. Claro que desejava uma casa para a mãe e seus quatro filhinhos. Mas, de saída, queria coragem, alegria e brilho para aqueles olhos tão tristes, embora o preço para isto fosse que passasse para mim, numa transfusão de sofrimentos, o olhar magoado e sem vida da pobre senhora.

Há quanto tempo aquele garoto descalço, maltrapilho, contempla a vitrine cheia de brinquedos? Claro que eu gostaria de ver todas as crianças bem alimentadas, vestidas e calçadas direitinho. E só imagino criança com algum brinquedo gostoso na mão. Mas, no momento, eu gostaria mesmo era de sorver a frustração do garoto, de tal modo que, com brinquedo ou sem brinquedo, o olhar dele brilhasse e ele sorrisse feliz.

Vendo o mendigo sentado no chão, senti, em dois tempos, que ele morria de vergonha de ter que estender a mão a quem passava. Era mais para jovem do que para maduro. Não carregava sinal de doença ou de defeito físico. Com certeza, não encontrou trabalho, cansou de tanto rodar pedindo emprego. Mas ninguém o acha com cara de mendigo. E ele tem fome. Maior do que a fome só a vergonha de ter que estender a mão a quem passa.

Sonho com o dia em que não falte trabalho, nem condições humanas e bem remuneradas para todos! Mas, no momento, queria que, ao menos diante de mim, sumisse a vergonha que meu irmão tem de pedir uma ajuda pelo amor de Deus, embora o preço para isso fosse que o sofrimento dele colasse em mim.

Quando entrei na loja de discos, o dono da loja estava gritando com o empregadinho que ficou morto de vergonha, ao receber uma reprimenda daquelas na frente de fregueses. Como eu gostaria de tornar-me invisível para poupar ao jovem a vergonha do carão na minha frente! Ou então, como gostaria que a humilhação que ele estava sentindo passasse para mim.

Como eu gostaria de sorver de tal modo o sofrimento alheio que, na hora mesma, meus irmãos sentissem mais leves os fardos que carregamos ombros, as angústias que carregam no coração!
Segunda-feira, 5.2.1979

Obs: crônica escrita por Dom Helder Camara, especialmente para o seu programa UM OLHAR SOBRE A CIDADE.
.Imagem e texto enviados pelo IDHEC – Instituto Dom Helder Camara
. Ver AUTORIZAÇÃO do IDHEC no item  OBRAS LITERÁRIAS.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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