Dênis Athanázio 1 de maio de 2017

Denis reparar1

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Gosto de analisar a disposição com que as palavras se apresentam e de como uma convida a outra para formar a frase desejada. A sintaxe é a forma que o escritor inventou para poder desenhar e pintar com letras, pontos e palavras.

Quando ouço ou leio a palavra reparar, me vem à mente a ideia de parar, voltar a atenção e re-olhar, assim como quando dizemos que reparamos em algo ou em alguém, isto é, voltamos a atenção a isto. Depois vem o conceito de reparar no sentido mais usual que é o de consertar, restaurar, onde só se repara ou conserta algo quando se investe tempo e trabalho prático para ver o objeto restaurado, ou quiçá, com o desempenho melhor do que antes.

Nessa era da tecnologia em que estamos inseridos, fazer reparos ou consertar qualquer tipo de produto é quase um pecado. A maioria dos objetos de hoje não foram feitos para durarem muito tempo e sim para serem substituídos imediatamente quando quebrados ou ao apresentarem defeitos com o uso diário. Inclusive em alguns deles o reparo equivale ao mesmo valor de um novo. Nossas crianças estão aprendendo com a gente a nova fórmula da modernidade: quebrar é igual a trocar. Se nada tem conserto, eu sempre quero tudo novo.

Se levarmos essa problemática para os relacionamentos humanos, quando uma amizade, namoro ou casamento começa a apresentar os “primeiros defeitos”, somos tentados a trocar e não a reparar o dano. Sabemos que, ao nos esforçar para melhorar e reparar qualquer tipo de relacionamento, começamos a perceber algumas questões mais profundas dentro de nós mesmos e do outro que nem sabíamos que existiam. Se estamos sempre trocando de pessoas em nossa vida de forma muito rápida, seja qual for o tipo de relacionamento humano, corremos o risco de conhecer apenas a superfície ou a ponta do iceberg do outro e de nós mesmos. Inclusive, fantasiosamente, esse lugar aparenta ser mais fácil e confortável de viver, mas já aprendemos com Freud que o grande iceberg escondido debaixo da água (inconsciente) é o que rege nossas vidas e de onde nascem todas nossas neuroses. Querendo ou não, é preciso entender que esse muro de gelo existe.

Certa vez um colega me disse que se tornou mecânico graças ao seu Fusca 77. De tanto quebrar e aparecer problemas no carro que nem ele sabia que poderiam existir, fez desse aprendizado uma futura profissão, começou a conhecer melhor o Fusca e com o tempo aprendeu a repará-lo.

Foi a psicanalista Melanie Klein que introduziu o conceito de reparação na teoria psicanalítica. Ela explica que o primeiro objeto de amor e ódio do bebê é a mãe, pois quando a mesma acolhe e alimenta seu filho, passa a ser amada, mas, em contrapartida, quando o bebê está com fome ou dor e seus desejos não são atendidos, imediatamente a mãe é um ser odioso para a criança. Klein continua dizendo que,“quando surgem conflitos inconscientes de amor e ódio na mente do bebê e o medo de perder o objeto amado entra em ação, ocorre um avanço muito importante no desenvolvimento. Esses sentimentos de culpa e de sofrimento surgem como um novo elemento na emoção do amor. Quem nunca se sentiu culpado ao sentir ódio de quem ama? Tanto na mente inconsciente da criança como na do adulto, ao lado dos impulsos destrutivos há uma profunda ânsia de fazer sacrifícios, a fim de ajudar e restaurar as pessoas amadas que foram feridas ou destruídas na fantasia”. Esse é o caminho da reparação.

Uma das contribuições que o psicólogo talvez possa proporcionar ao paciente é a de levá-lo através da palavra e interpretação a desenvolver esses recursos internos de reparar alguns conteúdos sofríveis que ele entende ser irreparável dentro de si, isto é, sem esperança de mudança.

Entendo também que existem realidades e relacionamentos que temos que mandar “para o espaço” e trocar por outros melhores, assim como quando precisamos trocar de carro porque o custo do conserto e o trabalho que ele nos dá não compensam a energia gasta nem o dinheiro para arrumá-lo. Mas há muitas realidades nas quais podemos investir nossa energia (se assim quisermos) com o objetivo de restaurá-la, sem jogar tudo pro alto de uma só vez. Talvez encontremos uma luz ou, pelo menos, uma vela acesa para o que pensávamos ser o fim, porém era apenas uma página mal escrita de um livro que pode ser reescrito ou reeditado.

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Pessoas não são coisas, mas temo por estarmos “coisificando” as pessoas. Quem resgata a sua humanidade consegue ter coragem de olhar para seus próprios desconsertos existenciais e, a partir desta visão, desenvolver mais tolerância com os outros nos seus desajustes.

Se quiser sair da superfície e tocar uma alma humana com todas as suas contradições, belezas e defeitos, vá para a garagem ou quartinho da bagunça e pegue sua caixa de ferramentas, pois vai encontrar muita coisa para reparar principalmente em você mesmo.

Obs:  O autor é Psicólogo, palestrante, terapeuta de família casal.
Imagens  enviadas pelo autor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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