No sertão, há uma idéia de primeira ordem. Soube-a depois pude notar que há, naquelas terras, algumas histórias que são inenarráveis, pois graças à sua natureza maravilhosamente ilógica e absurda, delas a linguagem não consegue dar conta. Outras, não obstante, são dizíveis e de tal característica é que se torna mais poderoso o demônio-homem do sertão. Entre esta última estirpe, há, por exemplo, aquela que deu origem ao nome da cidade de Pau dos Ferros, no alto oeste do Rio Grande do Norte.
Segundo tal história, como contam uns e outros, há tempos imperava, perto de uma lagoa, no alto sertão do Rio Grande, uma árvore, do tipo oiticica, cajazeira ou jucá, não bem se decidiram a história ou a invenção; o fato é que ela — exemplar farto de belo vegetal — destacava-se pelo tamanho e, conseqüentemente, pela sombra que proporcionava.
Sombra, vale dizer, é moeda de grande valor lá onde se vive sob o sol sertanejo. E, por isso, era tal o lugar em que o gado, o qual era conduzido de um lado a outro do sertão, recebia alguns momentos de sossego da caminhada. Podiam, portanto, saborear um pouco das águas lacustres, sempre ao sabor das securas de seus organismos ou, principalmente, das idiossincrasias de seus vaqueiros condutores.
Estes, os vaqueiros, por suas vezes e no mesmo intuito das reses, refaziam-se do cansaço, proseavam e fugiam do castigo do sol sertanejo. E aqui é bom que se relembre Guimarães Rosa, quem, com propriedade, disse que duas são as conseqüências quando vaqueiros proseiam: ou saem cabeças quebradas ou saem boas confissões. Ele está duplamente certo, mas falta-lhe o terceiro resultado, que se deu na história de Pau dos Ferros. É que lá, sempre após o descanso, movidos ou por necessidade ou pelo mesmo motor que faz as crianças escreverem os próprios nomes nas carteiras escolares, os vaqueiros aproveitavam o tronco da indefesa árvore para testar os seus ferros de marcar gado.
Não é que fosse o hábito totalmente descabido. Cascudo, por exemplo, registrou uma justificativa para a referida prática de marcar a árvore. Segundo ele, os riscos quentes na árvore tinham como função o armazenamento e a exposição da legitimidade dos ferros de gado. Não hei — ou por preguiça ou pela natureza aqui desnecessária da discussão — de entrar na disputa.
O fato é que, alheios à sociologia que insistia em lhes entender os quereres, os vaqueiros acendiam uma pequena fogueira; esquentavam os ferros até tornarem-se impetuosas e brasis armas; e, depois, como se fossem ímpios senhores da natureza, marcavam indelevelmente o tronco com o símbolo que haviam os bois e vacas de propagar sertão a dentro. Sendo assim, como contam, a prática foi se disseminando e, pouco tempo depois, não mais havia um só vaqueiro que não ousasse macular a árvore dos ferros, ou, como chamavam, o pau dos ferros.
Como é prática em alguns povos, o escopo do nome generalizou-se e, desta feita, as redondezas da árvore começaram a ser denominadas da mesma forma que o tronco do vegetal. Pau dos Ferros tornou-se, então, não apenas a árvore, mas toda a cidade que crescia em sua proximidade. Hoje, ao que parece, destruíram a árvore inicial e, em seu lugar, há o mercado da cidade, alguns gatorros esfomeados e, em perímetro maior, a vastidão do sertão, que guarda cuidadosamente a cidade, com seus encantos e mistérios. Eis que aqui jaz a idéia de primeira ordem — aquela do primeiro parágrafo —: a linguagem, no sertão, é sincera, e, desta feita, não há em um só nome uma história, verdadeira ou irreal — não importa —, que o sustente.
Publicado em Jornal de Hoje, Natal (RN), p. 2- 2, 17 maio 2001