www.mariainezdoespiritosanto.com

… e lá vou eu, seguindo minha trajetória diária. Quase onze da manhã e eu ainda não consigo dar a aceleração total nem a meus pensamentos, nem a minhas pernas, que, por serem curtas precisam de movimentação mais intensa que o do comum das pessoas. Mas vou! Assim,do meu jeito próprio, que acaba sempre parecendo meio elétrico, driblando transeuntes mais relaxados, escolhendo os cantinhos das calçadas para passar,  porque o relógio, esse companheiro de compasso dissonante, diz que eu já devia estar lá.

Aí paro: na minha frente, beira de rua, o garoto. Nem tem 5 anos, certamente. Calças arriadas, quase nu, procura desajeitadamente controlar um carrinho de metal, preso ao cadarço das calças que lhe caem pernas abaixo. Ele nem parece perceber a falta da roupa. Importa-lhe o brinquedo diminuto, amarrado ali, com certeza para evitar que se perca. Os carros passam a seu lado. As pessoas transitam bem perto, na calçada. Tudo a menos de dois palmos do menino. E ele ali, lutando para desenrolar o carrinho. Só. Nu e desamparado.

Aproximo-me e pergunto-lhe se quer ajuda. Ele imediatamente olha, guloso, pra dentro da minha bolsa/cesta, destampada e convidativa. Repito a pergunta, esclarecendo o que pretendo fazer por ele:

– Deixa eu te ajudar com sua roupa.

Ele continua a espichar o pescoço em direção a minha bolsa, mas não me impede de aproximar-me e levantar suas calças. Aceita o cuidado, mas não diz palavra.

Estou ali, desenrolando o carrinho e improvisando uma amarração para sua bermuda, ao mesmo tempo em que explico que ele precisa manter-se vestido, quando vejo se aproximar um guarda. Penso imediatamente que ele virá em nosso auxílio, que olhará pelo menino, cujos pais, são, provalvemente, o casal  que vejo estendido na calçada, poucos metros dali, dormindo profundamente sobre retalhos de papelão.

Viro-me para o policial e o vejo cumprimentar um homem, em quem reconheço o diretor da Escola da vizinhança. Este, correspondendo à saudação, adianta-se na calçada, ao lado do “meu”  menino, sem sequer olhá-lo, abrindo caminho para uma fila de crianças de seu colégio, que já se aproxima. Meninos e meninas, com camisas escolares que os identificam, todos devem ter entre 6 e 8 anos. Vêm acompanhados por varias professoras e, ao passar por nós, têm o polícia e o diretor como supervisores de sua caminhada. Provavelmente trata-se de uma pequena excursão a algum lugar das redondezas, atividade de campo, como são chamadas, em  linguagem pedagógica, essas programações, realizadas para que os estudantes entrem em contato direto com o ambiente e aprendam mais sobre ele. (Que ironia!)

O menino, agora semivestido (porque camisa não tem), olha encantado para as crianças. Elas passam, ele estica a mão e uma das meninas sorri. Momento fugaz de breve interação, que marca o reconhecimento da semelhança essencial. Apenas isso.

Alerto o pequeno para o perigo de estar na rua, entre os carros e, voltando daquele momento hipnótico, lembro de meu compromisso profissional, despeço-me e sigo meu caminho. Passo pelo casal estendido no chão e meu coração esperneia, reclamando por uma solução que eu não tenho para dar, nem sei onde buscar.

Nas horas seguintes funciono em duas sintonias: uma, em que me ligo ao meu trabalho cotidiano e outra, onde me pergunto incessantemente por que algumas crianças podem ter todos os cuidados e cuidadores que merecem e necessitam, enquanto outras ficam tão desprotegidas, completamente expostas a toda sorte de perigos e dificuldades. Por que nenhuma proteção merece um menino anônimo,  mesmo quando está  nu, mesmo quando  exposto aos carros que passam, mesmo quando está completamente só? Por que nem o policial, um servidor publico reconhece, nele, seu legítimo direito de cidadania?

Lembro de meu sentimento ao ver o filme do Cartola. “No Brasil, não cuidamos de nossos gênios” pensei, então.

Essa foi a manha de  9 de outubro passado. No mesmo dia, a manchete do jornal “O Globo” anunciava os  recentes ganhadores do Nobel de Medicina.
Meus olhos se detêm horas mais tarde na notícia: Mario Capecchi, um dos laureados, e um sobrevivente das ruas e do abandono. Ele conta que, separado da mãe aos três anos, vitima da barbárie do nazismo, vagou por quatro anos por ruas e orfanatos, ate ser recolhido em estado de quase total desnutrição.

Aquele menino, que encontrei pela manha,  sem roupa, nem qualquer proteção, pode ser, potencialmente, um transformador do mundo. Vitima  de discriminação igualmente cruel e assassina,  talvez o mundo  perca os benefícios de sua genialidade, se continuarmos a torná-lo invisível.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]