(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio)
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A expressão “espírito de porco” na língua portuguesa e muito concretamente no Brasil significa uma pessoa ranzinza, rabugenta e negativa, que só vê o lado sombrio das coisas, diz coisas desagradáveis, causando constrangimento com suas atitudes.
Meu sentimento é que esse “espírito de porco” se apossa de muita gente – sem querer fazer injustiça aos porcos – quando observo algumas reações a situações vividas e atitudes visibilizadas do Papa Francisco. Desta vez, concretamente em sua visita a Milão, capital financeira da Itália, situada ao norte do país. Ali o pontífice, ao visitar uma zona pobre da cidade, rompeu uma vez mais o protocolo e utilizou um banheiro público. O gesto espontâneo e tão humano do Papa chamou a atenção do público presente e foi captado por muitas câmeras e presenciado pela grande quantidade de pessoas que ali se aglomeravam para vê-lo.
Nos comentários sobre a notícia, vemos, no entanto, reações totalmente descabidas. Alguns por considerar que o Papa não saberia ordenar suas necessidades fisiológicas antes de sair no espaço público e isso rebaixaria sua figura e sua posição. Imagino que quem fez tal comentário seja puro espírito, da categoria dos anjos e não dos seres humanos, não tendo por isso necessidades a satisfazer nem urgências físicas a atender. E por isso brinda os leitores do periódico com essa pérola.
Ao utilizar o banheiro que se lhe apresentava na ocasião em que seu corpo pedia, o Papa simplesmente demonstrou ser algo a que algumas pessoas ainda não se acostumaram: humano. Como todo ser humano vivo, seu dinamismo corporal funciona. E há ocasiões em que há que respeitar suas exigências. Inclusive quando se é Papa. Ou chefe de estado. Ou Presidente da República. O corpo tem suas razões e algumas delas são imperiosas e iniludíveis.
Por não ter vergonha de sua humanidade nem pretender ocultá-la sob um falso angelismo que o situaria no nível dos seres espirituais e não humanos, o Papa não hesitou em usar o banheiro público, como qualquer outra pessoa o faria. Parece que alguns, possuídos pelo que o vulgo chama “espírito de porco” ficaram chocados com isso.
Ainda em Milão, Francisco teve um encontro com presos na penitenciária de San Vittore. O Papa é muito atento aos encarcerados e várias vezes tem dito que a Igreja deve aproximar-se dessas pessoas para transmitir-lhes o perdão e a misericórdia divinos. Desta vez, porém, o pontífice não se limitou a conversar e almoçar com os detentos. Também descansou brevemente dentro da presídio no quarto do capelão. É a primeira vez na história que um Pontífice descansa e dorme, ainda que por um breve espaço de tempo, dentro de um cárcere.
A aproximação do pastor com as ovelhas feridas e isoladas do convívio com a sociedade para cumprir pena determinada pela lei se faz ainda mais visível e evidente. Ali onde estão aqueles que são considerados uma ameaça à segurança, o Papa não apenas se faz presente, mas dorme e descansa. Em lugar de fazê-lo em uma casa religiosa, na sede da arquidiocese ou mesmo em um hotel, escolhe faze-lo no mesmo lugar onde dormem os presos, em solidariedade concreta com os mesmos. Como se quisesse demonstrar que nada teme estando ali entre eles.
Não poderiam faltar os comentários desairosos e inoportunos diante de um gesto profético desta natureza. Questionamentos do gênero: “Por que vai dormir na cela do capelão e não junto com os detentos?” foram feitos, assim como outros menos convenientes ainda.
O pontificado de Francisco, entre outros muitos frutos positivos, tem tido este de oferecer uma outra visão da pessoa do Pontífice e seu ministério. Despojado de distâncias e afastamentos causados pela solenidade da posição que ocupa, o Papa argentino tem insistido em estar próximo das pessoas, em afeto e solidariedade, mostrando-lhes o rosto de uma Igreja formada por seres humanos, frágeis, finitos e limitados. Mas que a partir dessa fragilidade, é chamada a ser, antes de tudo, solidária.
Os dois episódios que comentamos e provocaram comentários tão inconvenientes trazem à tona uma visão dualista e equivocada sobre como é e, sobretudo, como deve ser o chefe da Igreja. Não é nem deve ser alguém distante, acima das vicissitudes pelas quais passa a humanidade que deseja servir. Ao contrário, em tudo com ela solidário, por tudo desejoso de servi-la, assume plenamente sua condição em seus aspectos mais francamente concretos. Igualmente e mesmo naquilo que tem de mais frágil e vulnerável.
Em suma, não deseja estar em nada separado daqueles que carregam o peso desta humanidade. Mesmo dos que estão mais à margem da mesma e não inspiram segurança, e sim medo. Coerente e inspirado em seu espírito de solidariedade Francisco continua surpreendendo a todos. Mesmo aqueles que, possuídos pelo “espírito de porco”, encontram sempre algo a criticar em seus inusuais e tão humanos gestos.
Obs: Maria Clara Bingemer é autora de “A Argila e o espírito – ensaios sobre ética, mística e poética” (Ed. Garamond), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
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