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É dito afamado, cujo autor foge-me da reminiscência, que as línguas, em geral, têm funções específicas. Segundo o dito, o alemão serviria para os militares; o francês, para os letrados; o espanhol, para o povo; e o inglês… Bem, disse o fulano, o mesmo do olvidado nome, que o inglês serviria para os cavalos. Não me é, contudo, o presente desígnio a consonância ou discórdia com o referido autor do dito, mas sim, a clarificação da idéia de que afirmações como a dele devem, de uma forma ou de outra, mas sempre com o mesmo intuito dos andrajos da veracidade, serem ligadas a fatos históricos. E, mais que isto, aqui lhes darei coerente noção de onde não possa ter fundamento o dito de que a língua inglesa, pelo menos como um todo, seja a língua dos cavalos.

O fato é que, assim como os filhotes da suçuarana, certas idéias já nascem com manchas escuras no corpo. Prelúdio, quiçá, da caligem ou pretura que se configurarão as concatenações que as suçuaranas filhotes assim como as idéias farão no tempo de suas existências. À parte as especulações de caráter geral, um dado exato pode ser apreciado: a idéia da qual falo a respeito tem nascedouro conhecido, isto é, nasceu em Hastings, cidade inglesa e portuária… Corrijo-me: cidade falida e, pode-sedizer, ainda portuária. Lá, encontram-se velhos pescadores que amam seus cães e cervejas, mas não suas esposas; senhoras corcundas que passeiam pela orla, sempre empurrando carrinhos de bebê, sem bebês, mas com bonecas de brinquedo; e rapazes morosos, donos de bermudas que vão dos joelhos até bem acima da cintura, e que passam horas nas livrarias, olhando o mesmo livro, a mesma página, a mesma figura…

Há em Hastings um castelo, importante historicamente, mas transformado em ruínas pelo castigo do tempo e artimanha da fatalidade: metade dele despencou no mar. Existe ainda, como há em várias cidades marítimas da Inglaterra, um píer, contudo, no de Hastings, construíram uma boate, obstruindo, desta feita, um desfrute mais livre das facilidades portuárias que poderia ele oferecer. Hastings é assim, lugar que parou na história, e, para não morrer no presente, vive do passado. Além disso, no malabarismo crônico que aqui se apresenta, o tempo muda e o ano corrente passa a querer parecer-se com o mais nobre de outrora, mais especificamente, o de 1066, ano da Batalha de Hastings, uma das mais importantes da história inglesa.

No que concerne à tal batalha, digo-te que, assim como o Cubas, Edward, o Confessor, não teve filhos. Não que algumas das boas qualidades este não as tivesse. Ele as tinha – hei ainda de dizer-to – com um quê de veemência, como também, as mesmas boas qualidades, têm-nas, por exemplo, as flores de uma planta. Entretanto, no fito do mesmo cotejo, se Edward, por suas qualidades, era comparável às flores de uma planta, estas flores, não há dúvidas, seriam como as acarpanteses, que não dão frutos. A ausência de rebentos, não obstante, configura-se questão de caráter relativo: para Cubas, é de arranjo teórico; para uma acarpantese, de caráter natural; para Edward, de ordem prática, mais que isto, de ordem monárquica, visto que concernia à acessão ao trono real inglês. Somado a isso, sabe-se que, diferentemente da ausência de rebentos, a morte não é relativa: flores, Cubas e reis morrem. Desta feita, com a morte de Edward, o Confessor, o trono inglês ficou vazio. E, assim como três parece ser o número de palmos que formam uma só alna, três foram os homens que declamaram para si mesmos o direito de um só trono: Harald Hardrada — rei da Noruega —, Harold II e William da Normandia.

Nada obstante, há – e como as há! – equivalências que não se realizam. Nesta bitola, três palmos continuaram somando uma só alna e três reis em potencial não somaram um só trono. À frente disto, a relação eqüivaleu-se a uma desavença, a uma intriga ou a uma peleja. Que matemática nos fornece a vida! E, como pelejar é ir à luta, fazer o combate, Harald Hardrada fê-lo em setembro de 1066, em Stamford Bridge, Yorkshire, norte da Inglaterra, contra Harold II, que havia sido nomeado rei daquele país. Sua nomeação se deveu ao fato dele ter sido forte acólito, quase braço direito, do então falecido Edward, o Confessor. E, na justificativa da última sentença, diz-se que Harold II fora primeiro assessor de Edward, o Confessor, graças ao seu grande servilismo empreendido — peculiaridade dos nobres e necessidade dos plebeus — e ao fato de ter sucedido ao seu pai no condado de Wessex em 1053, o que lhe deu um certo quê de prestígio.

Voltando ao mês de setembro de 1066, Harald Hardrada perde a batalha e Harold II, orgulhoso por sua vitória e — como dizem os próprios ingleses — tão ébrio quanto um Lorde, volta ao sul da Inglaterra. Lá, seu exército enfrentaria o de William da Normandia, o Conquistador. A batalha de 14 de outubro de 1066 ficaria registrada como uma das mais decisivas batalhas da Inglaterra e conhecida como a Batalha de Hastings. William da Normandia, apoiado pelo papado, derrota Harold II, e é, em 25 de dezembro de 1066, coroado rei da Inglaterra. Harold II, vale ainda dizer, não morreu como um tolo, mas como um guerreiro cujo olho, mas não a honra, fora impiedosamente aflechado, levando-o primeiro à desistência da vida e depois a perda do trono.

Bom seria que a flecha que foi ao olho do rei, apontasse-nos a ligação que há entre o fato histórico, que brevemente se conta, e o dito do primeiro parágrafo. Antes que corra eu algum perigo, explico: Harald II era anglo-saxão, descendente dos espécimens germânicos que viviam entre o mar Báltico e o rio Reno; William da Normandia, na França, crescido entre os normandos, falava língua de base latina. E, como foi dito que a conquista se deu daquele por este, os líderes anglo-saxões foram gradativamente, começando pelo sul da Inglaterra, sendo substituídos pelos normandos. Como conseqüência disso, não só mudou o povo, mas também o caráter da sua língua.

Aqui, como se vê, há o prelúdio da ligação que se prometera. Isto é, graças a vitória de William da Normandia, a língua inglesa passou a embriagar-se de caracteres latinos. Hoje, pode-se ver a diferença etimológica entre o inglês culto e popular. O primeiro abusa de palavras latinas, que são longas e expressivas. O último, no afã da revanche e da desforra saxônia, continua com palavras rápidas, pequenas, facilmente pronunciáveis… De qualquer forma, hão os inquiridores de admitir que, embora não se saiba se cavalos são latinos ou saxônios, há, como historicamente foi demonstrado, dois tipos de língua inglesa. E, como parece que cavalos não podem falar das duas maneiras, fica provado que inglês não é, pelo menos como um todo, a língua para os eqüinos.

Obs: Galo, Natal (RN), v. XI – 6, p. 6- 6, 01 jul. 1999.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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