Luiz Carlos Andrade 1 de abril de 2017

“Algumas lembranças retornaram
irretocáveis e sem lapidações.”

Era quinta-feira da última semana da quaresma. O dia havia despertado manso e em silêncio, como nas semanas anteriores. O céu abria grafite suave e o sol trazia a claridade matinal em um tom de cinza sombrio e bastante calor. O movimento buliçoso dos meninos na Praça de Santa Cruz refletia de maneira admirável a perspectiva da participação de um representante de nossa tribo na cerimônia litúrgica do lava-pés, momento em que rememorava-se a humildade de Cristo na última ceia com seus apóstolos.

Itabaiana sempre foi um município com raízes fixas nas tradições cristãs e vivia o final de uma quarentena de melancolia contagiosa, marcada por distorções e privações sociais: sem festas, os santos cobertos com panos de cor roxa, as mulheres com véu de malha fina transparente cobrindo a cabeça, as mocinhas sem maquiagem, a cidade jejuando nas sextas-feiras e fazendo penitências para obter o perdão dos pecados. Não havia sentido envolvimento doloroso e sensação de baixa auto-estima profunda por causa de uma morte ocorrida há vinte séculos. Entretanto, a cidade chorava por um herói que temeu a morte.

Romualdo, o mais baixo entre os meninos de cinco a sete anos da escola, estudante exemplar, disciplinado, sempre bem penteado e bem vestido, era um modelo de criança que todos queriam imitar. Transformado em Thiago, saiu de casa acompanhado pela família, vários vizinhos e quase todos os colegas. Caminhávamos como uma procissão, por ruas e becos, guiados pelo pequeno apóstolo, na direção da Praça da Igreja, local florido e bem cuidado que parecia um oásis no meio da cidade empoeirada por ruas empiçarradas. As pessoas nas janelas, calçadas e nas portas das casas queriam conferir todos os detalhes na comitiva. Olhava para elas como se dialogasse intimamente sobre exagerada tristeza que se expressava em cada face. Precisava de respostas concretas. Indiferentes, permaneciam silenciosas, observando crianças e adolescentes sendo estimulados e preparados para a vida religiosa e social. Nos ensinavam que por mais doloroso e desafiador que fosse o sofrimento na Terra, para voarmos daqui para o céu, às vezes sem aviso prévio, só a igreja conhecia o caminho e possuía concessão exclusiva de purificar todas as culpas e pecados, e tornar fácil o acesso à eternidade. A programação da quaresma envolvia a população e fornecia conteúdo para motivar sofrimento, compaixão e dor, com a finalidade de fixar e perpetuar a marca Jesus.

Naquela época, meus heróis eram Zorro, Durango Kid, Billy Kidd e Roy Rogers, machos valentes, rápidos no gatilho, que beijavam as mocinhas e nada temiam para manter o bem sobre o mal. Sentia-me desapontado em adorar um defunto, de pés juntos, pregado numa cruz, no entanto, amedrontava-me divergir da tradição mantida por gente, em sua maioria, de baixa habilidade intelectual. As pessoas não se davam conta de que o sentimento de dor é sempre maléfico e acreditavam em coisas totalmente irracionais para os dias atuais. A mortalidade humana é universal, inevitável e irreversível.

A igreja, orgulhosamente arrumada, abrigava quase toda a cidade. O olhar da multidão imobilizado e fascinado, estava dirigido para o altar, onde o padre, senhor absoluto do ritual, rezava a missa. A cena do sacerdote lavando, enxugando os pés e entregando um pão a cada apóstolo causava imenso esplendor. Ocorria verdadeira apoteose tributada ao Salvador, observada atentamente pelos fiéis. O espetáculo encantou-me e seduziu-me. Queria sentir-me valorizado, ser olhado por todos e massagear minha mente com os brasões de nobreza dos pequenos apóstolos, entretanto, estava fora do lugar. Tinha que achar um jeito de ser lava-pés e não podia abdicar de significativo desejo.

Encerrada a missa, caminhei em direção ao padre e encontrei dificuldades para atravessar a multidão. Meu coração batia rápido e aos pulos, a camisa suada estava agarrada ao corpo e meus lábios sem umidade. O padre perfeitamente fiel aos costumes, esclareceu-me que a seleção dos lava-pés era prioridade de Dona Maria de seu Joãozinho do vapor, sempre solidária aos movimentos sociais da Igreja. “Ela escolhe doze, entre os seus mais de trezentos afilhados, e os arrumam de modo idêntico aos apóstolos na última ceia”. O padre, moderado em todas as coisas, tratou-me como um amigo querido. No entanto, esfriou meu corpo e machucou minha alma com a sua sinceridade. Não fui batizado por Dona Maria e mesmo se hoje fosse incluído entre seus afilhados, poderia esperar mais de três décadas na fila. A vontade de ser lava-pés não sobreviveria tantos anos. Em 1990, haveriam novos tempos, novas necessidades, novas ideias e outras motivações. (25/03/2017)

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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