Frei Betto 15 de abril de 2017

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Pode ser estancada a corrupção que cria relação promíscua entre Estado e interesses privados? Depende. Não bastam leis. É preciso criar mecanismos de rigorosa aplicação das leis. E ainda que existam, seus operadores, como os fiscais da Carne Fraca, podem se omitir graças à corrupção.

Qual a saída? Basta olhar em volta. Todos conhecemos pessoas éticas. Que antídotos têm contra a corrupção? Outrora, os preceitos religiosos. A noção de pecado. Não havia como o fiel se esconder do olho divino. Seus mais íntimos atos, até pensamentos, eram contabilizados pela Providência a favor de sua salvação ou perdição.

A sociedade se secularizou. Na expressão de Max Weber, se desencantou. Ainda que muitos admitam crer em Deus, há quem não dê a menor importância aos preceitos religiosos. Vide a América Latina, o mais cristão de todos os continentes. E, no entanto, o mais desigual e injusto.

Não se pode esperar, portanto, que a sociedade ocidental do século XXI volte à ética fundada na noção de pecado. Onde a solução?

Sócrates deu a resposta. Sabia que a ética de todos os povos que lhe eram contemporâneos, ou que o precederam, derivava de oráculos divinos. Grego, ele também olhou para o céu de sua cultura, o Olimpo. Verificou que, dali, não havia como extrair princípios éticos. O Olimpo era visceralmente antiético. Então Sócrates recorreu a outra fonte: a razão humana. Sua ousadia foi considerada blasfêmia; seu exemplo, herético; e sua culpa, digna da pena de morte. Há, no entanto, quem viva socrática e kantianamente coerente com seus princípios éticos.

Estamos hoje na terceira margem do rio. Saímos da margem da ética baseada na fé e ainda não chegamos à margem da ética fundada na razão.

Esse limbo ético é agravado pela ideologia neoliberal capitalista, que situa os interesses privados acima dos direitos coletivos; a competitividade mais importante que a solidariedade; a apropriação privada dos bens um direito, e uma aberração a socialização dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano.

As ciências ajudariam? Elas se divorciaram da ética. O maior atentado terrorista de todos os tempos, as bombas atômicas atiradas contra Hiroshima e Nagasaki, foram construídas por cientistas altamente qualificados. Como os agrotóxicos que envenenam nossos alimentos, ou a lógica das ciências econômicas, centrada na prevalência do capital privado.

A política também se divorciou da ética. Segundo Lévinas, a política deveria ser controlada pela ética. Porém, transformou-se em balcão de negócios. Daí o pânico dos políticos com os desdobramentos da Lava Jato. A caverna de Ali Babá foi invadida por holofotes.

Ética não é questão de moralismo. É questão de princípios e estruturas sociais. Há quem seja educado com o próximo e, no entanto, procure um jeito de pagar a seus empregados cada vez menos, de modo a acumular mais riqueza. Há quem injete recursos no cassino do mercado financeiro e é incapaz de socorrer com dinheiro um parente ou amigo enfermo.

Não creio em ética dos políticos (ou dos padres, pastores e qualquer outra condição humana). Temos todos defeito de fabricação, o que a Bíblia chama de pecado original. Há que se obter a ética da política, ou seja, criar instituições que, malgrado a fraqueza humana e a vontade de corromper ou ser corrompido, impeçam que o desejo se transforme em ato.

Os princípios éticos devem estar enraizados em uma cultura holística. Ética sistêmica, ambiental, que considere a relação do ser humano com a natureza e seus semelhantes. Ética que resgate a sacralidade da Mãe terra e favoreça a cidadania de direitos, e não de bens.

Tal ética só será possível se ancorada na espiritualidade. Não me refiro à religião, e sim à fonte das religiões: as motivações altruístas que regem a nossa relação com o próximo, a natureza, o Transcendente e consigo mesmo.

Ainda que a pessoa seja ateia, há nela uma emulação espiritual que norteia suas atitudes. O desafio é evitar que essa emulação seja egocêntrica, e lograr que se volte à solidariedade, ao amor, à justiça e à compaixão.

Fora disso, o projeto humano pode ser considerado um rotundo fracasso.

Obs: Frei Betto é escritor, autor do romance policial “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros.

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