(para Guimarães Rosa 1908-1967)

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Fizeste uma literatura alimentada de dois planos:
os paralelos e os meridianos.
Sem esquema, sem redução,
sem dogmas e sem convenção.

E criou o sertão. O dentro da gente, o ser tão sem fim.
Pleno de achegos e achegas dos sertões.
De carona, transfigurou-nos, nordestinos e que tais,
e quejandos, pelo encantamento.

E da geografia deserdada do sertão,
viu nele o mundo, o cosmos,
desaguando em um caos interior.
Nas batidas e pancadas da sua viola sincronizada
e seus ritornelos e interlúdios.

Lembrando-nos que já fomos jagunços e capitães,
nascidos e criados na intendência do sertão.
Com o nosso calado pertencido,
forjado no poder dos mandacarus de fogo.

Disseste: “Há o sertão; existem os sertões”.
Porque sabia que todo o embasamento da alma nacional
está nesse tema e suas variações.
Desde o canto da jandaia, do buriti perdido
até os tristes trópicos.

Nomeaste o sertão eco do mundo
Ou ermo do mundo?
Não importa, a dicotomia se assenta na amplidão
desse não-lugar.

No teu apostolado delírio,
lembrou-nos que os sertões são prenhes
em tragédias espantosas, para sempre perdidas.
E que suas personagens são pessoas
que nunca morrem, ficam encantadas.

Na tua ave palavra,
– única em sonoridade e significado –
criaste um grande viveiro de aves raras,
transfiguradas de poesia, delírio e alumbramento.

Sem qualquer xamã ou guru,
passaste pelos estágios que todos sonhamos:
conhecendo o valor místico do sofrimento, como médico;
o valor da consciência, como rebelde;
e o valor da proximidade da morte, como soldado.

Divagaste e deliraste construindo a argamassa
que deu conduto e passagem ao sertão.
Sobre um verbo barroco e grandiloqüente,
jagunciou seu pedantismo erudito
e um certo maneirismo pessoal.

Do verismo coloquial da tua voz
o sertão passeia dentro da gente
pelos caminhos do mundo,
e segue ermando
porque pródigo em descaminhos.

Transformaste tua grande obra num catecismo
que, feito um livro de cabeceira, um breviário,
– rio caudaloso de sabedoria e psicologia –
tem sempre uma frase, um ensinamento novo
a nos restituir o brilho das iris novidadeiras do ver.

Revelaste os três sertões em um só:
o místico, o político e o geográfico.

O primeiro, por meio de suas personas
sempre portadoras de um sentido demoníaco,
em contraponto com a paz branca do sertão
e indiferentes ao lazer da vida no campo.

O segundo, na literatura como voz,
nas tuas criaturas que, feito as palavras,
também adoecem e morrem,
e buscam no encantamento do infinito literário
o direito à eternidade.

E o terceiro, na tratativa
de um sertão temporal e atemporal,
sertão espaço, trans-sertão,
nesse sertão sozinho,
herdeiro de uma geografia deserdada
que transcende às coordenadas
e às demarcações territoriais.

Profeta maior e fabulador de agruras,
soube, de antemão, que o sertão é uma guerra,
de antes do tempo, de antes do homem.
Terra de obras sofridas, transfiguradas
no amargo registro do humano sofrimento.
Campo de eterna batalha entre Deus e o Diabo,
entre o fora e o dentro da gente.

Profeta maior rosiano,
protegido por Quelemém numa linha
kardequiana, plotiniana e transcendental,
reuniu em um só o vaqueiro e o ministro.
o lógico e o absurdo,
num sentido camusniano para o destino humano.

Poderoso animista e animalista,
possuiu uma ternura infinita pelos bichos.
Chorou com os cães escorraçados dos
terreiros dos sertões,
e com as cadelas com tesouros cor-de-mel
escondidos nos olhos,
curtiu estranhas e padecidas humildades.

Na sua sinfonia sertaneja
faz a gente cavalgar, agalopado,
nas misteriosas e variadas sonoridades
do seu sertão.

Escritor endemoniado e divinizado,
escreveu páginas como tecidos sangrentos,
plenas de ditongos alongados,
aliterações, verbos escrachados,
fonemas, treponemas,
e períodos longos e necessárias repetições.

Dono de uma prosa deslumbrada,
gestor de verbos incendiados,
trabalhador de lentidão bovina,
pescador de frases matutas nos comboios do sertão
e portador da plangente paciência ruminante,
traçou um misticismo que nunca desbocou no sebastianismo.

Criador de enigmas e ambigüidades mil para o sertão,
senhor dos grandes festins, arrancos e cavalgadas,
portador da palavra alada num sertão medieval,
da poesia erótica, surrealista e fantástica
rompeu os sertões num ciclo fáustico e sinfônico.

Compôs-se de um grande homem
porque transfigurou a fraqueza individual
ajuntando-a às forças infinitas da humanidade.
E compôs nada mais, nada menos do que
uma tetralogia metafísica e medieval
por entre as veredas do Grande Sertão.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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