Padre Beto 15 de abril de 2017

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Por baixo da aparente tranquilidade da cidade, seus habitantes estão desesperados. Um grupo de extrema direita autodenominado “Preferência Nacional” destila ódio e violência contra os imigrantes. Um motorista de táxi endivida-se até o pescoço com seu novo carro. À beira da loucura, uma mãe se prostitui para pagar as drogas da própria filha. São pequenos dramas cotidianos que acontecem no microcosmo da cidade de Marselha, mas que se repetem e se multiplicam em qualquer outro canto do planeta. Aos poucos, sob a competente batuta do diretor Robert Guédiguiam, as histórias poderão ou não se entrelaçar, poderão ou não ser resolvidas, sem as fórmulas fáceis consagradas pela estética norte-americana. Sobrevivência, globalização, luta de classes, racismo, desespero, desamor, vários temas e subtemas – individuais e sociais – são discutidos, sem panfletarismo, de forma quase documentária, pelo filme “A Cidade está tranquila”. Da janela de um apartamento podemos olhar para a nossa cidade e ter a impressão de que ela está tranquila, mas enquanto estivermos alienados e “afastados” de seus problemas, mais cedo ou mais tarde, eles nos atingirão.

A grande preocupação dos filósofos romanos do início da era cristã era a busca da arte do bem-viver, ou seja, a busca de tornar a vida uma maravilhosa música. Nessa procura de harmonia entre os dedos do sujeito e as cordas da harpa da vida, Plutarco não somente desenvolve uma reflexão sobre o próprio sentido da música da existência, mas também recomenda determinados exercícios que o músico da história deve praticar. Um de seus exercícios principais está relacionado à memória: lembrar sempre o que temos na cabeça, o que aprendemos. Um provérbio muito conhecido na antiguidade ocidental era “abrir seus próprios cofres”, ou seja, regularmente, ao longo do dia, recitar o que se aprendeu de cor, lembrar as sentenças fundamentais que se leu. Relacionado à memória está a revisão do dia no momento de dormir. Antes de cair no sono, todos nós deveríamos rever, como que em um sonho, todos os momentos vivenciados durante a viagem daquele dia e retirar deste período da existência lições de aprendizagem. Porém, o mais interessante em Plutarco são os exercícios contra a “curiosidade negativa”. O filósofo, por exemplo, recomendava a prática de caminhadas sem olhar para os lados. Deve-se, dizia Plutarco, caminhar pelos cemitérios sem distrair-se lendo as inscrições sobre os túmulos que informam acerca da vida das pessoas. Na verdade, o que Plutarco reprovava era a curiosidade extrema de saber o que ocorre de mal com o outro. Para transformar a existência em uma harmoniosa melodia é necessário desvencilhar-se do olhar maldoso, malicioso, malevolente sobre o outro e concentrar-se no caminho reto que se há de observar, que se há de manter, na direção de uma meta. Existem pessoas que são viciadas em observar o negativo da vida alheia e deixam de canalizar suas energias para tornar suas próprias ações construtivas e frutíferas. Em outras palavras, muitas pessoas deixam de realizar para simplesmente observar. Mas Plutarco critica não somente a observação passiva, mas a observação necrofílica, ou seja, o gosto em assistir as quedas, os erros, as situações difíceis dos outros. Para Marco Aurélio é necessário concentrar-se em si mesmo para não se deixar levar pelo turbilhão de pensamentos fúteis e maldosos: “buscando imaginar o que faz tal pessoa, e por que, o que diz, o que pensa, os planos que organiza, e outras ocupações deste gênero, que te fazem levar-te pelo turbilhão e negligenciar teu guia interior”. Aqui se trata de uma concentração teleológica: olhar para a sua própria meta. Como o atleta se concentra na preparação para uma corrida ou luta, diz Marco Aurélio, devemos nos concentrar em nosso próprio desempenho. Aqueles que verdadeiramente se concentram em suas próprias realizações possuem a tendência de valorizar as conquistas dos outros e compreendem com muito mais facilidade suas falhas ou quedas. Para Millor Fernandes, o crítico no sentido negativo da palavra, aquele que investe sua energia para descobrir o que acontece de errado na vida das pessoas ativas é o “impotente que faz tudo para brochar os outros. Quando não consegue isso, pelo menos evita que tenham orgasmo”. Por fim, se torna fundamental perceber que a musicalidade da vida não é individual, mas sempre está entrelaçada no coletivo. Uma orquestra faz uma desastrosa apresentação se cada músico procurar ressaltar as falhas dos outros e desenvolver uma apresentação solo. A sociedade só poderá viver tranquila se todos estiverem vivendo dignamente, caso contrário, todos estarão em uma guerra disfarçada de paz. O sistema continua matando pessoas e nós só reclamamos quando somos atingidos.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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