Carta a quem participou do memorável encontro do grupo de amigos ex-alunos do Colégio Pio Brasileiro em Roma nos idos dos sessenta, no Caraça- Minas Gerais

Caruaru, Pe., 05 de Abril de 2017, na semana anterior à Semana Santa, já com votos de Feliz e Santa Páscoa, e na data de aniversário de Madalena

dom seb carta aos amigos ex alunos

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Queridas irmãs e queridos irmãos, amigas e amigos

Já se vai algum tempo desde que nos encontramos no Caraça, no início de março último.

Antes de tudo, celebramos a Deus pela oportunidade que nos foi dada de nos rever, alguns e algumas depois de tantos anos. Foi momento ímpar de renovação de laços, de recuperação de memórias, de reconhecimento e de contemplação de como Deus tem estado em nossos caminhos de maneiras tão diversas e ao mesmo tempo tão convergentes em tantas coisas. Damos graças a Ele, Mistério do qual bebemos, Ele que nos move pela fé e Se revela com tanta força em nossa liberdade, em nossas opções movidas pelo amor e em nossa coragem de servir nas diversas circunstâncias nas quais nos achamos na vida.

Agradecemos, com muito reconhecimento, ao Vicente, com sua proverbial dedicação às relações, publicamente renovada durante o encontro, ao reconhecer que esse é um carisma muito próprio seu; também ao Oto e à Juci, que nos emocionaram pela dedicação de preparar o encontro e, na última hora, tiveram de renunciar a estar conosco; lamentamos a ausência do Virgílio e de mais alguns outros, impossibilitados de chegar; ao Geraldo Lyrio, nosso querido Arcebispo de Mariana-MG, sempre o mesmo na simplicidade da amizade e na alegria das gargalhadas de antigamente, nosso anfitrião; ao Beozzo, a sua competência intelectual e a seu carinho, sempre com todas as informações do que se passa no mundo e na Igreja, não só hoje, mas pelos séculos afora… ao Ernane, sempre tranquilo e fiel, sem arredar um passo de seus compromissos com uma Igreja que seja realmente do povo; a Dom Demétrio, um dos nossos maiores profetas, como o classificou Beozzo, com a doçura e a simplicidade de quem “sabe em quem confia” e em favor de quem entrega a vida… não dá para citar todo mundo, mas todos e todas se sintam incluídos(as), pois sem nós enquanto conjunto o encontro não teria acontecido…

Gente que há tanto tempo não se via, era a primeira vez, desde Roma, que eu via o Lalau de novo e, penso, continua “sem relógio”; Gilberto Calcagnotto que veio da Alemanha; o Naidison não teria arriscado a convalescença se o encontro, aparentemente tão informal, não fosse algo tão precioso… Que maravilha, sentir que há laços que não se dissolvem, nem pela distância de espaço e tempo, nem pela diversidade de opões a que a vida nos tem levado. É que há coisas que se dão no tempo mas geram vínculos eternos! Os depoimentos finais, de nossas esposas presentes, e sobretudo de nosso pessoal mais jovem, filhas, genros e que não viveram as experiências do Pio, foram significativos a esse respeito, penso em Bel, em Maíra, em Anderson e Glauco…além das esposas e parentes(as): Mindo, Chica, Sônia, Madalena, Iracema e mais gente amiga ligada ao grupo, infelizmente Margot não pôde vir com Vicente. Este foi um aspecto precioso, a presença de alguns e algumas de nossos familiares, alguns dos(as) quais já fizeram questão de conhecer o Colégio Pio Brasileiro, para como que confirmar aquele “cheirinho” da Roma do Concílio que sentem em nós…

Sem dúvida, não seria fácil achar cenário tão inspirador como o do Caraça, com sua paisagem e história de antigo colégio e seminário, formador de tantas gerações mineiras, hoje santuário e bela pousada, com tanta memória gravada em suas velhas pedras. Naquele cenário não era difícil recuperar lembranças de tantas vivências, sobretudo de um tempo quando nossa mocidade naturalmente nos enchia de ilusões: ilusões sobre nosso futuro pessoal, sobre as transformações no mundo, sobre as mudanças na Igreja, que a poriam na dianteira de uma sociedade melhor e mais justa… clima da juventude da época, Paris, Londres, Roma, Nova York, que apontava na direção de que o fim da Guerra do Vietnam e o clima mundial de expectativa de nova liberdade, junto com a celebração do Concílio Vaticano II, eram sinais de que o mundo estava aprendendo alguma coisa nova… e cá estamos, quem sabe, com já nossos muitos anos, a perceber o que São Francisco expressou muito bem no leito de morte: “Irmãos, comecemos tudo de novo, pois até agora nada fizemos”. Importa que acolhamos as lições da vida e, mesmo tendo perdido as ilusões da ingenuidade juvenil, nunca percamos a esperança e possamos responder como o grande filósofo inglês Bertrand Russell, assentado junto com jovens nas calçadas de Londres nos idos dos protestos de 68: “Percebo que quanto mais envelheço, mais revolucionário me torno”.

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Penso que o mais bonito e mais importante do encontro foi o próprio fato de encontrar-se. Os depoimentos de vida foram o conteúdo mais precioso e o momento espiritual mais alto. Estávamos ali arcebispo, bispos, padres solteiros e padres casados, gente leiga, mulheres e homens e até criança… representação “completa” da realidade da Igreja cristã (só faltou, infelizmente, o cardeal Damasceno, também nosso colega, impossibilitado de viajar) e até ecumênica, católica romana e anglicana, anúncio vivo da Igreja do futuro (e com futuro). Tanto em reunião plenária, quanto nas animadas conversas do refeitório e nos corredores e cantos do casarão, cada qual falou de sua caminhada, de sua fé, de suas esperanças e dos rumos de cada vida. Contar e cantar a vida foi o momento alto de tudo o que aconteceu no Caraça, era nossa “liturgia da Palavra”, que durou quase três dias, coroada com a vivência da celebração da Eucaristia que, na verdade, apenas traduzia em “dramatização do mistério sagrado” o mistério de comunhão que somos e em que cremos, Cristo, nossa Cabeça e nós Seus membros, buscando assimilar no dia a dia seu jeito divino de ser, Ele, Caminho no qual vamos, com todas as imperfeições, experimentando a cada passo o que quer dizer “divinização”, como diziam belamente os Pais da Patrística grega. Santo Agostinho também falava disso, quando explicava: “Você, em verdade, é membro do Corpo de Cristo, por isso você recebe (na comunhão) aquilo que você já é, o Corpo de Cristo”. O lobo-guará, com sua diária visita vespertina no adro da Igreja, vindo da mata e das rochas em redor, com seus passos lentos e meio desconfiados (com boas razões, pois, como dizia em filme Giacoppetti, “o ser humano é esse animal mais cruel”), nos lembrava de que essa comunhão se estende a toda a criação, com delicadeza e compaixão universal, como nos ensina magistralmente o povo budista.

Por isso, lamentei que o tempo para os depoimentos, alguns verdadeiras (in)confidências, tivesse sido meio apressado pela marcação do relógio. Quem sabe, de outra vez, o momento de estudo, que é importante como atualização e reflexão conjunta, pudesse ocupar só metade de um expediente, ou metade da manhã ou metade da tarde. É só uma sugestão.

Voltamos com saudade de vocês e em nossa viagem pelo Sul de Minas, região das águas minerais (Caxambu, Cambuquira, Lambari, São Lourenço…), sob a proteção da Beata Nhá Chica e do Beato Padre Victor (talvez no Brasil o primeiro padre negro, escravo e filho ilegítimo, graças à clarividência do grande bispo Dom Viçoso), de vez em quando Madalena e eu recordávamos o encontro com saudade. Nhá Chica, mulher sem letras, mestiça, vidente e conselheira do povo e até de gente mais graduada, junto com Padre Victor, é modelo e estímulo para nossa gente do povo, pois, pela santidade e por uma vida dedicada aos pobres, além do exemplo de coragem para enfrentar a época escravocrata, ambos deveriam ser erguidos pela Igreja como “sinais sobre os montes” (cf. Is 52, 7-12) que animassem o povo dos pobres, particularmente o povo negro, a efetivamente tomar posse do país. Proclamar santos e santas tem de ser pra isto, exemplos de carne e osso que animem o povo dos pobres a se organizar e lutar pelo Reino de Deus, de justiça e igualdade. Não basta que estejam nos altares a receber homenagens e orações, têm de ser “heróis” que nos comandem nas lutas e vitórias de Deus.

É claro que antes de descer ao Sul, ficamos um dia e meio em Mariana, com a preciosa companhia de Beozzo, depois de um giro introdutório à região de Catas Altas que, ainda na tarde do domingo da saída, Geraldo pessoalmente nos proporcionou. Em Três Pontas e região tivemos a generosa hospitalidade de Dom Diamantino, amável bispo emérito de Campanha, que nos acolheu, foi cicerone e até motorista, auxiliado em alguns trechos pelo jovem Ricardo. De sua casa passamos à casa paroquial de São Lourenço, onde ele mesmo fora pároco antes de tornar-se bispo, aí fomos recebidos com delicadeza fraterna, e com Joana, Rosângela, e os padres e seminaristas nos sentimos em casa. Padre Bruno nos proporcionou conhecer uma jovem família refugiada da Síria. Para nós foi grande emoção, além de admirar o gesto que foi feito em resposta ao apelo do Papa Francisco. A partir de nosso amigo e irmão Diamantino e com ele, tivemos a chance de conhecer Lena, sua auxiliar, cujo espírito de caridade profunda nos encantou, conhecemos a alegria e a hospitalidade do Carmelo de que é capelão, e um pouco mais da gente de Minas, piedosa (dia de semana com missa de igreja cheia, pela manhã), simples, hospitaleira, de fino trato.

Pois é, as saudades prosseguem vindo conosco e a alegria do reencontro permanece sem querer de se apagar. De tudo, o mais importante, porém, é permanecer em profunda comunhão em torno dos ideais que nutriram nossa juventude e ainda hoje, já na idade em que estamos, parecem persistir a brilhar em nosso olhar. Peçamos a Deus e agradeçamos o dom de permanecer assim, prontos para partir, mas cheios(as) de entusiasmo para recomeçar, com vontade de, ao entrar no céu, segredar a Deus aquela canção: “Começaria tudo outra vez, se possível fosse, meu Amor”, porque, como disse a avó de Saramago, “a morte não me dá medo, faz parte, mas penso que vou sentir é muita saudade, porque este mundo (a vida) é muito bonito”.

Recebam nosso abraço afetuoso e fraterno, cheio de saudades,
Sebastião com Madalena

Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….

Imagens  enviadas  pelo autor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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