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Faz algum tempo que ele se mudou para a casa do outro lado da rua, de frente para a minha. Chegou só, com a mobília modesta e escassa, num fim de tarde. Naquele tempo, eu tinha hábito de ler jornais sentado no banco que coloquei na calçada. Ao vê-lo, acenei boas-vindas, mas ele não se manifestou. Conjecturei que tivesse visão precária, baseado nos óculos com ultrapassadas lentes fundo de garrafa. Porém, mais tarde, descobri que o sujeito era incapaz até mesmo de cumprimentos miúdos.
Alguns vizinhos tentaram estabelecer contato, tocando a campainha; porém, ele se limitava a criar minúscula fresta entre as cortinas para espiar quem estava ao portão. Saía da casa apenas para ir trabalhar, e sempre sisudo. Por isso, recebeu a alcunha de carrancudo.
Naquela rua, todos os dias a molecada jogava futebol. Vez ou outra a bola caía na casa do vizinho mal-humorado. Às vezes, ele a devolvia, mas furada. Por essas e outras, havia muita gente querendo dar uma lição naquele homem insociável.
Certo dia, o malandro do bairro marchou até a casa dele e apertou a campainha. Após insistências frustradas, o rapaz agarrou e chacoalhou o portão. Com cara de “sai daqui senão eu mordo”, o carrancudo apareceu à porta. O malandro, arriscando um “Ô tio, me arruma duzentos real?”, ouviu: “Vá trabalhar vagabundo!”. Imaginei reação, que não aconteceu.
Minutos depois, foi a loira da casa um meia nove quem apertou a campainha. Exuberante no silicone e na minissaia que mal cobria o umbigo, não demorou a ser atendida. Com os olhos lacrimejantes, ressuscitava a personagem que fizera num teatro chinfrim:
– Me desculpe. Não quero aborrecer o senhor.
Ele se apressou em oferecer um lenço.
– Não chore, moça, e nem me chame de senhor.
– Desculpe. Posso chamá-lo de meu bem?
O consentimento veio em forma de sorriso.
– Sabe o que é, meu bem, o gás acabou, acabou o arroz, o feijão. Acabou tudo. Estou passando por dificuldades.
Imediatamente, ele tirou do bolso pelo menos três cédulas de cem e as deu a ela. Ela enxugou as lágrimas, agradeceu e se despediu. Os olhos dele apenas perderam o êxtase quando a viu ir ao encontro do malandro.
– O otário me deu mais do que você queria.
Ao perceber a trapaça, o carrancudo cuspiu marimbondos e inquiriu furioso:
– Que palhaçada é essa? O que esse homem é seu?
A loira, carregada de cinismo, revelou:
– Este aqui? Ah, este aqui é o meu maridão!
Obs: Publicado no Jornal Tribuna do Norte – Pindamonhangaba – SPaulo
O autor é membro da Academia Pindamonhagabense de Letras é autor de: Lágrimas de Amor – poesia; O sapinho jogador de futebol – infantil; O estuprador de velhinhas & outros casos – contos; Histórias de uma índia puri – infanto-juvenil; O casamento do Conde Fá com a Princesa do Norte, e Um caso de amor na Parada Vovó Laurinda – cordéis.
Imagem enviada pelo autor.