ronaldo quando um poste

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O fato é surreal, coisa que se esperaria apenas de um escritor, um mentiroso e louco escritor. Um homem morre dentro de um poste deitado num canteiro central. O caso aconteceu no Jardim Europa, na Capital goiana. O corpo, em avançado estado de decomposição, só foi encontrado no dia 20 de novembro porque os moradores e comerciantes locais denunciaram o mau cheiro que grassava na região. Calcula-se que já teriam passados uns 15 dias de sua morte. Para retirar o corpo, os bombeiros tiveram que serrar o oco poste metálico.

Vamos para o segundo ato da trágica surrealidade. Dagoberto Rodrigues Filho tinha 68 anos, carpinteiro, mas que há 17 anos começou a apresentar problemas mentais. Morava na casa de uma filha, com a mulher e neto, no Setor Aeroporto Sul, em Aparecida de Goiânia. “Ele fazia acompanhamento psicológico, mas não consegui internação para ele. Às vezes, ele saía e ficava até cinco dias sumido, mas sempre voltava ou dava um jeito de ligar para a gente buscar”, eis a fala da filha grafada na reportagem do site G1. (http://g1.globo.com/goias/noticia/2016/11/iml-identifica-corpo-encontrado-em-decomposicao-dentro-de-poste.html).

No terceiro ato da peça medonha vamos encontrar mais do que o descaso dos poderes públicos gera. O poste onde o corpo foi encontrado é um dos vários que estão deitados nos canteiros centrais de várias vias da região sudoeste de Goiânia. Estão largados há quase 3 anos como intenção de expansão de uma rede elétrica de alta tensão pela Companhia Energética de Goiás (Celg). A Eletrobras, estatal federal do setor, suspendeu a obra há dois anos, depois que várias falhas foram apontadas em um relatório do Banco Internacional de Desenvolvimento (BID), no projeto de implantação da rede. Os moradores do bairro lutam para que as estruturas sejam retiradas, já que até uma comerciante afirmou que ali virou um “aviãozinho”, neguim passa deixa a droga e logo depois outro a vem buscar.

Agora pulemos para um revés dessa tragédia. Em Santo Antônio da Platina, no Paraná, a população de cerca de 43 mil pessoas, se ergueu contra um projeto de lei que praticamente dobrava os vencimentos do prefeito e dos vereadores, barrou e ainda baixou os salários. O do prefeito era de R$ 14.760,00 iria para R$ 22.000,00, retraiu para R$ 12.000,00. O dos vereadores, que era de R$ 3.745,00 pularia para R$ 7.500,00. Mas acabou caindo para pouco mais de um mínimo: R$ 970,00. Deu até no Jornal Hoje, da Globo, espalhando-se nas redes sociais como exemplo de que, quando a população toma consciência do disparate que virou a política nacional, o caldo vira. Em Gurupi, terceira maior cidade do Tocantins, com estimados 84 mil habitantes segundo o IGBE, o Movimento Participa Gurupi, idealizado por empresários e profissionais de vários setores, depois de conseguir mais de 5 mil assinaturas, está lutando para emplacar um projeto de lei popular no Legislativo, com a sociedade marcando presença na câmara e que, inicialmente, equipara os vencimentos dos vereadores ao teto dos professores do Município, cerca de R$ 2.200,00. Mas não só. Prevê o corte de várias regalias aos edis.

Na prática, projeto como esse de Gurupi e a ação no município paranaense pretendem mesmo é acabar com a “profissão” da carreira política, da qual, infelizmente, todo o país acabou refém e hoje, todos pagamos o alto preço: sem emprego, sem saúde, uma educação esmilinguida, sem assistência, sem lazer e sem cultura. Pra que é mesmo que se paga impostos? Um país continental que nesse Século XXI ainda convive com doenças do século retrasado, com a falta de infraestruturas de transportes, ferroviário, rodoviário e aquático. E em que pese ter um povo chamado de bom e cordial, esse povo parece que só aprendeu mesmo foi a Lei de Gérson. O genial Darcy Ribeiro já cantava a pedra ainda no final do século passado: – se não construirmos escolas dentro de 20 anos, teremos de construir presídios. E esse virou mais um nicho de corrupção por parte dos políticos. É só atentar para o valor de cada preso ao mês e confrontar com o nosso mísero salário de trabalhador que sustenta esse país.

Voltando para a tragédia no poste. Na questão das responsabilidades é erro pensar que a culpa é da empresa, que deixou de retirar os postes por tanto tempo. É do poder legislativo que cria e aprova leis que em sua maioria só favorecem os capitalistas de plantão, geralmente patronos da corrupção, porque financiadores de campanhas eleitorais. Também é erro prejulgar a filha diante da situação, já que o idoso desaparecia por vários dias, mas depois voltava. Também é culpa do legislativo por aprovar lei que não permite que uma doente mental não seja internado, devido a haver membros da família com possibilidade de cuidarem dele. Qual é essa possibilidade? Cada família tem seu drama, todos correndo pra tentar sobreviver nesse mar de lama em que estamos. Por fim, igualmente errado e antihumano fazer gracinhas sobre a desgraça dos outros. Sim, e simplesmente porque é com o outro e não com você ou algum de seus parentes. Isso pode ser chamado de compaixão.

Qualquer pessoa adulta com um mínimo de escolaridade e bom senso sabe como esse monstro chamado corrupção funciona no Brasil. Ele é fruto de uma relação prostituída entre os três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. E o bê-a-bá é mais ou menos assim: o Executivo compra (corrompe) a maioria dos legisladores para ter trânsito livre nas negociatas sujas que realiza por meio de aprovação total dos seus projetos de lei e medidas provisórias. Tá na Constituição Federal: os ministros do Supremo Tribunal Federal são nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal, ou seja, do legislativo. O saldo é esse: nas três esferas o que vemos são salários milionários, regalias ao cubo, e autoridades que parecem estar no céu, de tão inalcançáveis para nosotros, povo, justiça comum e mazelas. Há exceções, claro!

Agora, o quarto ato da peça surreal é o que, no fundo, mais me espanta e me acovarda enquanto ser humano. A parte dos comentários no site de notícias sobre o infeliz homem morto dentro do poste. Eles revelam a nossa alienação, apatia e imbecilização ao quadrado, tudo o que parece termos como única herança hoje. Não citarei nomes, até porque está tudo lá no G1.

A coisa começa como sempre: alguns lamentando e se surpreendendo com a absurda notícia. Logo depois, esquecem da tragédia e começa o coro do cão. Alguém comenta: – Deve ter sido manguaça da braba! Deitou pra dar aquela descansada e quando acordou estava morto. Outro emenda ironicamente: – esse senhor terá uma alma iluminada, amém! Aí, já viu não é? O trem desanda. Aparece alguém com uma alcunha que, essa sim, posso aqui utilizar e diz lúcida e humanamente: Pastor Lúcifer – Não existe qualquer justificativa para fazer zombaria sobre esta notícia. O comentarista que o fizer estará manifestando agoniante perversidade e estupenda fraqueza intelectual. E tenho dito. Pra quê? Logo alguém interveio sarcasticamente: – E você com nome do capeta! Falar o quê, né? Um terceiro, pra ficar por cima, dispara: – A velha história do sujo e o mal lavado kkkk kkkk kkkk kkkk. Chega outro e diz – A empresa de energia deveria ser autuado (sic). Outro logo filosofa replicando: – Fulana, a empresa não tem nada a ver com isso, quer dizer que se alguém cair em um rio tem que processar o estado? Um terceiro, parece que ainda na fase anal, deslancha: – Todos temos uma abertura na bunda e nem por isso isso é motivo pra qualquer um entrar. Aí o Pastor Lúcifer psicologiza: – os obsecados por referências anais tem (sic) altíssima probabilidade de guardarem em si sentimentos homoeróticos não revelados e muito mal rosolvidos (sic). Liberta-te hoje mesmo, Cicrano, e pára de sofrer.

À parte algumas risadas – depois de sentimentos de estranheza e perplexidade – você leitor, poderá tirar a sua conclusão. E, por fim, eis aqui um escritor e jornalista, antes de tudo um cidadão brasiliano, de origem nordestina, que se queda diante de mais essa tragédia e desses comentários em sua maioria, infelizes e, quando não, insanos. Comentários que só revelam que a ganância humana, ilimitada, gera um monstro horrendo sem rosto chamado corrupção e que acaba devorando a todos nós. (Foto: Ascom Bombeiros GO)

Obs: Imagem enviada pelo autor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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