Vladimir Souza Carvalho 1 de março de 2017

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Uma é a Iracema, a do romance de José de Alencar;  outra, a do samba de Adoniran Barbosa, letra que me chama a atenção, não pelas virtudes sonoras, mas pelo conteúdo. A Iracema, que crisma o nome da música, não chega perto da outra, do romance alencarino, cercada essa de todas as qualidades físicas, apta, portanto, para ser a primeira  miss Ceará.  A do samba não detém nenhuma virtude. Começa por ser surda/teimosa (“você não me escutava não”), e fatalmente distraída (“você atravessou na contra-mão”). Diria, assim de relance, que, em verdade, Iracema era burra, tapadinha da silva, de modo que não entendia as recomendações do amado, terminando por ser atropelada na Av. São João. Não é, pois, uma Iracema de virtudes  a serem realçadas.

Mas, o noivo-viúvo, também é outro distraído, para não dizer idiota. Tanto que perdeu o retrato da morta (“Iracema eu perdi o seu retrato”). Ou seja, poderia ter colocado a foto em porta-retrato em móvel ou pendurado em parede, levando em conta ser o único que tinha da defunta. E único porque o fato foi tão importante que mereceu uma referência na letra do samba. Mesmo assim, o amado remanescente o perdeu, salvando-se, apenas, “suas (da defunta) meias e seu sapato”, que, cotejando a letra, a gente fica certo que foram as únicas coisas que ficaram intactas depois do atropelamento. O corpo de Iracema deve ter ficado uma bagaceira.

Acho – sem querer abrir qualquer discussão religiosa – que a grande petulância do noivo-viúvo é  estampar a certeza de que Iracema “vive lá no céu e ela vive juntinho de Nosso Senhor”. Seria o céu o lugar dos teimosos, para não dizer dos burros e dos distraídos? A pessoa que vive área, voando, atravessando a rua na contramão, merece ir para o céu? Observe que, com a sua distração, Iracema criou um problema para o motorista, a ponto do noivo-viúvo reconhecer a sua inocência (“O chofer não teve culpa Iracema”), assertiva que poderia minimizar a acusação do homicídio, visto que, com a morte por atropelamento, necessário iniciar inquérito criminal.

Por fim, há um dado que revela Iracema, por qualquer meio, talvez mensagem espírita, exigia  a condenação do motorista: “Paciência, Iracema, paciência”. Mas, isso tudo é problema para o noivo-viúvo resolver, o que ensejou um samba excelente. A gente se contenta em ouvi-lo, mesmo sem caixa de fósforo na mão. ( 07 de outubro de 2016)

Obs: Publicado na Folha de Pernambuco
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras. 

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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