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1 – DOMINGO DOS LÍRIOS E DOS PASSARINHOS
Mt 6,24-34

Atentos às lições que a sábia Natureza gratuitamente nos oferece, todo dia, de olho nos lírios e nos passarinhos, a todo instante, precisamos fazer nossa escolha, nossa opção fundamental: Deus ou o Dinheiro!

A quem temos servido, em quem temos confiado, o que ou quem tem dado sentido a nossas vidas?…

Chegando para a celebração, no Dia do Senhor, com que disponibilidade vamos escutar sua Palavra, com que generosidade vamos celebrar a Ceia, em sua memória?…

Até onde tem ido a entrega de nossas vidas, em comunhão com Aquele, que nos amou e entregou sua vida por nós, pela humanidade, pela causa do Reino?… Que qualidade, que autenticidade, que verdade e que alegria terá nossa liturgia, nosso canto?…

2 – EM TEMPO DE CARNAVAL

O tempo é de CARNAVAL! Algum incômodo ou constrangimento essa palavra causa a certos ouvidos. Uns, por razões de “economia”, veem no Carnaval um desperdício: de tempo, de dinheiro e de energias… Outros, sentem o Carnaval como uma loucura, um excesso, uma depravação, um pecado… Todos eles e elas têm um tanto de razão, só não enxergam que esses mesmos “desperdícios”, “excessos” e “pecados” acontecem em muitas outras experiências e manifestações da vida e da cultura do povo, algumas até “religiosas”.

Hipocrisias à parte, não seria interessante observar, também, o tanto de arte e beleza, de sadia confraternização e alegria, de saudável lazer, que para tanta gente o Carnaval proporciona?… Para quem sabe aproveitar bem este tempo de brincadeira e descontração, de reencontros, arejamento e revitalização, o Carnaval “só” nos prepara para “o dia seguinte”, de retomada das tarefas do cotidiano, das lutas sociais e, até, de renovação da vida espiritual, pela participação na caminhada quaresmal.

3 – ADORAR, NÃO, VENERAR, EIS A QUESTÃO! SERÁ?..

 Por ocasião do tricentenário do achado da imagem negra da Mãe de Jesus nas águas do Rio Paraíba do Sul por pobres pescadores da região, uma escola de samba de São Paulo, a Unidos de Vila Maria, teve a genial ideia de homenagear a Mãe do Senhor sob o título que recebera de Nossa Senhora da Conceição Aparecida.

Consultados os responsáveis pela pastoral do Santuário Nacional de Aparecida, que parecem ter sido muito solícitos em repassar todas as informações que pudessem ser úteis para a composição do samba enredo e das coreografias do desfile, um cuidado tiveram os pastores, o de solicitar que, na letra do samba enredo, trocassem o verbo “adorar”, dirigido à Mãe de Jesus, pelo termo correto, teologicamente, que é “venerar”. Explicou-se que, nós, católicos não adoramos os santos, nem Nossa Senhora, “nós os veneramos, nós veneramos Nossa Senhora”. E de quebra, sugeriu-se que fossem moderados com a sensualidade e a nudez, no desfile.

Realmente, nós católicos e católicas, especialmente aqueles e aquelas que prestam algum tipo de serviço à educação e ao cultivo da fé cristã por parte do Povo de Deus, precisaríamos ser muito mais cuidadosos com o que a gente anda ensinando, e o que é mais grave, rezando e cantando. Um antigo axioma nos coloca de sobreaviso: LEX ORANDI, LEX CREDENDI. Num português bem rasteiro e compreensível: a oração é a norma da fé, ou seja, a gente crê do jeito que a gente reza. Se o que nos alimenta a fé e o que oferecemos como alimento da mesma ao Povo de Deus fosse, antes de tudo, o que lemos e meditamos nas páginas das Escrituras Sagradas, sobre tudo, dos Evangelhos, com certeza, nos encantaríamos e edificaríamos muito mais com a figura da Mãe do Senhor, como também, evitaríamos os desvios e aberrações em que a piedade popular, justamente por falta de orientação, por falta de uma catequese correta, tantas vezes incorre.

Infelizmente, em vez de uma pastoral de iniciação cristã, em vez de um cuidado permanente com a formação continuada da consciência cristã, o que vemos é, por conveniências e interesses, no mínimo, duvidosos e questionáveis, os que têm esta responsabilidade pastoral, não só irem na onda do devocionismo sem critério, como até promovê-lo, alimentá-lo e dele se aproveitar, seja como estratégia proselitista, seja com interesses mercantis.

Analisemos, por exemplo, a oração utilizada de modo mais frequente e enfático, no Santuário de Aparecida, no final de todas as celebrações eucarísticas:

“Ó Maria Santíssima, pelos méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo, em vossa querida imagem de Aparecida, espalhais inúmeros benefícios sobre todo o Brasil.

Eu, embora indigno de pertencer ao número de vossos filhos e filhas, mas cheio do desejo de participar dos benefícios de vossa misericórdia, prostrado a vossos pés, consagro-vos o meu entendimento, para que sempre pense no amor que mereceis; consagro-vos a minha língua para que sempre vos louve e propague a vossa devoção; consagro-vos o meu coração, para que, depois de Deus, vos ame sobre todas as coisas.

Recebei-me, o Rainha incomparável, vós que o Cristo crucificado deu-nos por Mãe, no ditoso número de vossos filhos e filhas; acolhei-me debaixo de vossa proteção; socorrei-me em todas as minhas necessidades, espirituais e temporais, sobretudo na hora de minha morte.

Abençoai-me, ó celestial cooperadora, e com vossa poderosa intercessão, fortalecei-me em minha fraqueza, a fim de que, servindo-vos fielmente nesta vida, possa louvar-vos, amar-vos e dar-vos graças no céu, por toda eternidade.

Assim seja!”

Como vamos convencer compositores de cantos litúrgicos ou catequéticos, ou mesmo, de um samba enredo, o mais bem intencionados que possam ser, de que não se pode “adorar” Nossa Senhora, se a ela nos dirigimos nesses termos:

“(…) em vossa querida imagem de Aparecida, espalhais inúmeros benefícios sobre todo o Brasil.”

(…) cheio do desejo de participar dos benefícios de vossa misericórdia, prostrado a vossos pés, consagro-vos o meu entendimento, para que sempre pense no amor que mereceis; consagro-vos a minha língua para que sempre vos louve e propague a vossa devoção; consagro-vos o meu coração, (…).”

“(…); acolhei-me debaixo de vossa proteção; socorrei-me em todas as minhas necessidades, espirituais e temporais, sobretudo na hora de minha morte.”

“(…)fortalecei-me em minha fraqueza, a fim de que, servindo-vos fielmente nesta vida, possa louvar-vos, amar-vos e dar-vos graças no céu, por toda eternidade.”

Chego a imaginar que, se no céu houvesse a praga do desemprego que ora nos atinge, a partir desta compreensão do papel de Maria, Mãe do Senhor, fatalmente, estariam desempregados o Pai e o Filho e o Espírito Santo. Brincadeiras à parte, esse jeito de falar, esses termos todos de caráter tão absoluto e totalizante, com os quais os devotos de N. S. Aparecida se dirigem a ela, por obra e graça da pastoral desenvolvida no Santuário Nacional, não conviriam senão à Divindade, no caso cristão, à Santíssima Trindade.

E pouco ou nada adianta apelar para as duas breves ressalvas que o autor desta oração faz, quem sabe, ele próprio, ao perceber o exagero que está cometendo:

– logo no início: “pelos méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo,”;

– lá pelo meio: “para que, depois de Deus,”.

Com certeza, o que pesam mesmo, na consciência do devoto, são as extensas e enfáticas expressões de “adoração”.

Imagino que, para este tipo de gente, fiéis e pastores, que assim costumam dirigir-se a Mãe de Jesus, a prece mais tradicional que os cristãos católicos costumam dirigir à Mãe do Senhor, esteja perdendo a graça, o valor e o interesse. É tão comedida. Fica tão aquém. Vale a pena olhá-la bem de frente, na sua versão católica pós-tridentina:

Ave, Maria, cheia de graça, (Lc 1,28a)
o Senhor é convosco. (Lc 1,28b)
Bendita sois vós entre as mulheres, (Lc 1,42a)
e Bendito é o Fruto do vosso ventre, Jesus! (Lc 1,42b)
Santa Maria, Mãe de Deus,
rogai por nós, pecadores,
agora e na hora de nossa morte.
Amém!

A primeira parte, a original, utilizada, inclusive, por luteranos e anglicanos, costumou-se chamar de “saudação angélica”. Na verdade, é uma composição de palavras referidas por Lucas, no Evangelho da Infância, como saudações pronunciadas, parte, pelo Anjo Gabriel, parte, por Izabel, quando da visitação de Maria. Note-se como tudo é absolutamente fiel ao relato do terceiro evangelista, com exceção do nome “Maria”, omitido por Lucas, segundo os melhores exegetas, porque, para o Evangelista, ela não era apenas um indivíduo, mas sua pessoa tinha a dimensão de toda a Igreja, continha toda a comunidade cristã, como o fruto na semente. Na sua pessoa, todas as pessoas batizadas, mais, todas as pessoas que “têm fome e sede da justiça” do Reino, estavam sendo saudadas. Todas elas, especialmente, a Comunidade Cristã, estavam sendo convocadas a comunicarem ao mundo o Salvador, a Salvação, à medida que ele se faz carne em suas vidas.

A segunda parte, a prece à Mãe de Deus, é de uma discrição impressionante. Apenas se pede que ela rogue por nós. Aliás, é o tanto que se pede em todas as ladainhas, a Maria e aos Santos e Santas: “Rogai por nós!”.

E não deixa de chamar a atenção duas ausências, em ambas as partes desta discreta oração: a primeira ausência é a do título “Senhora” ou “Nossa Senhora”. Este jeito de dirigir-se à Mãe do Senhor carrega consigo o inconveniente de soar como algo equiparado ao de “Nosso Senhor”, ou mesmo, de sinalizar para os menos informados, como se Maria fosse o par feminino de um “casal divino”: Nosso Senhor e Nossa Senhora… Aí, a Mãe de Jesus é chamada, simplesmente, “Maria” ou “Santa Maria”, mesmo que, em razão da divindade do seu Filho, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, seja saudada, a mais, como “Mãe de Deus”.

A segunda ausência é a do denominativo “virgem”. Tanto na primeira, como na segunda parte da oração, o que aparece é o papel de “mãe”, por ela desempenhado. Na primeira parte, de forma indireta, o Filho que dela irá nascer é saudado como “bendito fruto do vosso ventre” … Na segunda parte, de forma explícita, “Santa Maria, Mãe de Deus”. O fato é que a denominação de “virgem”, no correr dos séculos, assumiu uma proporção e insistência que importaria analisar, a bem da compreensão mais correta do seu significado. É possível que a “virgindade” de Maria, compreendida como realidade fisiológica e tão insistentemente apregoada como ela sendo virgem “antes, durante e depois do parto”, seja algo que vai além da intensão dos autores dos Evangelhos. Na linguagem simbólica, própria desse tipo de literatura, o que eles queriam realçar eram, provavelmente, duas realidades essenciais: primeiro, a dimensão divina da pessoa que iria nascer de Maria: “Por isso, aquele que vai nascer será chamado santo, Filho de Deus” Lc 1,35b); em seguida, a dimensão espiritual do gesto dessa mulher, condensada na resposta definitiva ao Anjo: “Eis aqui a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra!” (Lc 1,38).

Na verdade, a virgindade da Mãe do Senhor é muito mais uma realidade espiritual. Tem muito mais a ver com “disponibilidade”. E quanto a Comunidade Cristã ganharia em conversão e edificação, se fosse ajudada a entender que essa “virgindade espiritual” de Maria é para ser a qualidade nº 1 de toda a Igreja, a dimensão básica de toda a vida cristã! Ser virgem, no sentido profundo desse termo no Primeiro e do Segundo Testamentos, é ser disponível para Deus, o Esposo da Humanidade… ser disponível para Cristo, o Esposo da Igreja.

A insistência e a proporção que o atributo da “virgindade” veio tomando, ao longo dos séculos, virgindade entendida quase exclusivamente como um fato fisiológico, parece mais ter um caráter patológico, o mesmo que, numa Igreja dominada por celibatários nem sempre bem resolvidos,  contamina todas as realidades ligadas à sexualidade, à sensualidade, à pessoa da Mulher, aqui e acolá vista, não só como um ser humano inferior, como “parceira do diabo”, e ao Matrimônio, que, mesmo considerado “Sacramento”, é sempre colocado sob suspeita, e as relações conjugais sejam vivenciadas, quem sabe, por muita gente, como “comer do fruto proibido”.

Ah! Se o carnavalesco que compôs o samba da Unidos de Vila Maria tivesse sido orientado a realçar na sua letra todas estas dimensões do testemunho da Mãe do Senhor! A Mãe Aparecida teria a chance de inspirar em muita gente que fosse ver a escola na avenida ou no sambódromo, um jeito de ser cristão, cristã, muito mais fiel ao modelo confiado pelos evangelhos através da figura exemplar da Mãe do Senhor: alguém que na sua humildade, se reconhece chamado, chamada, por Deus para grandes coisas: “dispersar os que têm planos orgulhosos no coração”, “derrubar os poderoso dos seus tronos”, “exaltar os humildes”, “encher de bens os famintos”, “mandar embora os ricos de mãos vazias”, “lembrando-se de sua misericórdia, conforme prometera a nossos pais” (cfr. Lc 1,47-55): “uma terra boa e espaçosa, terra onde corre leite e mel” (Ex 3,8).

E, talvez, nem precisasse fazer aquelas recomendações à moderação quanto à sensualidade e à nudez, deixando a cargo dos coreógrafos, sambistas e passistas, a liberdade de expressar e celebrar, a seu modo e prazer, a bondade e da beleza da Criação divina.

Obs: Reginaldo Veloso, é presbítero leigo das CEBs
Assistente adjunto do Movimento de Trabalhadores Cristãos – MTC
Assessor pedagógico do Movimento de Adolescente e crianças – MAC
Membro da Equipe de Reflexão sobre Música Litúrgica do Setor de Liturgia da CNBB
Mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana – PUG (Roma, 1962)
Mestrado em História da Igreja, pela PUG (Roma, 1965).

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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