ronaldo sem mato e ssem saci

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Sou urbano. Mas um cosmopolita que necessita vez em quando de um retiro no mato. Um retraimento para tentar engrenar os parafusos descivilizados que teimam em se desarranjar na minha cabeça. Trabalho como publicitário numa agência até de certa forma renomada em sua região, na capital goiana.

Outro dia, sem muito o que fazer e de férias na fazenda de um amigo no interior do Tocantins, depois que todos estavam sestando após uma almoço deliciosamente caipira, com direito a galinha nativa e pequi, resolvi sair caminhando a esmo. Tenho há tanto essa mania. Às vezes, até na cidade, saio, quando posso, andando em passos sobrados.

Depois de percorrer uns 2 km avisto ao longe, numa baixada, um pequeno riacho. Rumei pra ele, na intenção de resfolegar na mansidão do seu estreito, mas, generoso caudal. Ao me aproximar, encontrei um rapaz pretinho, mas preto mesmo, quase azulado de tanta cor. Estava cabisbaixo, sentado na barranca do outro lado do riozinho.

Naquele ponto em que estávamos, o riacho media uns 15 metros de largura. Dessa distância, me acheguei na barranca de cá e me sentei. Olhei pra ele e ele devolveu o olhar. Mas um olhar indiferente. Não denotava nem curiosidade e nem receio de mim. Eu, ao contrário, liguei logo as antenas do medo e da desconfiança. Quem seria? O que estaria fazendo ali? Não lembrava de tê-lo visto nas imediações antes. Ele estava sentado sobre um tronco velho, caído ali pelo menos há alguns anos. Da posição em que eu me encontrava, só podia ver uma parte sua, ou seja, o lado direito do seu corpo.

Ganhando coragem, arrisquei um boa tarde, ao que ele apenas se voltou diretamente pra mim, tirou um cachimbo da boca com a mão direita e me fitou, calado e ainda indiferente. Mudos, ficamos uns quinze minutos. Ele lá, cabisbaixo, eu, cá, arrevezando os olhos de vez em quando pro seu rumo para ver o que ele faria.

De repente escuto ele falar e me assusto: – ocê cridita em saci? Embasbacado, duplamente, primeiro, por ele se dirigir a mim depois de tanto silêncio e depois, por ele vir com uma pergunta sem sentido como esta. Penso alguns segundos e devolvo: – olha, não acredito, nem desacredito. O diálogo que se inicia entre nós a seguir, só contando, pra alguém me acreditar.

Ele me disse que o Saci anda bem desconfiado. Tanto, que quase nunca mais aparece. Pra ninguém. – Curpa dessa mudernage toda, – disse. Dizendo que isso acontece devido à extinção de árvores e vegetações típicas das regiões brasileiras. Matança de rios e lagos. Monocultura em extensão galaxial. Que o Saci está preocupado com o sumiço dos bichos e insetos, seus amigos desde a origem do mundo. As andorinhas que estão desaparecendo. Assim como as abelhas.

– Danado, sô! Me diz ele. E continua: – Se esse bichim sumir de vez, cabou-se o que era doce. Ele me lembra do que estudei na cidade e que diz que as abelhas são responsáveis por quase 80% da polinização no planeta, ou seja, a transferência de material genético da parte masculina para a parte feminina da flor. Processo que dá vida a todos os frutos e garante a renovação constante do reino vegetal.

– E os pirilampos? Quem inda inxerga argum purai? É tanta luiz qui cega inté a gente das cidades. Magina os bichim. Sem si vê pela luz de cada quar, caba qui num se arrepruduz. Esses tornados que já estão aparecendo até no Brasil ele disse que o Saci não tem nada a ver. Que isso é culpa também do desmatamento. – Povo inguinurante, sô! Num sabe que as arves quebra os ventos e faz ele se tornar umirdi dinovo. Ele, falou que o Saci sempre gostou de dar seus pulos e rodopiar nos redemoinhos, e emendou: – Adimais, essis ridimuin dele num causa istrago ninhum. É tudim pra ajudar no troca-troca das flores e atiçar o fogo dos bichos. Eita! Penso eu. E não é que ele tem razão. A gente quando toma susto passa a olhar e a viver a vida com mais intensidade e desejo.

Ele ainda me disse que juntaram tristeza e desapareceram também o Boitatá, a Boiúna, o Curupira, o Mapinguari, o Lobisomem, a Mula sem Cabeça, a Cuca, o Boto, a Iara e o Negrinho do Pastoreio. Afora os outros que nem os nomes ninguém se lembra mais.

Depois dessa conversa desprogramada, ele, percebi, mesmo de longe, parece que estava chorando. Ou foi um cisco que caiu no olho dele. Não sei. Só sei que ele passou a mão esquerda nos olhos, e havia alguma coisa, parece-me um boné na cor vermelha nessa mão. Em seguida, ele, como por encanto, desapareceu. Foi só eu tirar os olhos dele um segundo. Levantei-me, meio trôpego e rumei de volta pro rancho. Uma lágrima me encheu os olhos. Achei que fosse um cisco. Talvez fosse um cisco chamado civilização.

Obs: Imagem enviada pelo autor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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