IvoneGebara

 

Minha reflexão embora se abra a um
contexto internacional da Igreja Católica Romana situa-se mais
particularmente no contexto latino-americano até certo ponto menos
envolvido na temática da ordenação de mulheres. Nunca fomos
assíduas lutadoras nessa reivindicação. Entretanto, nessas últimas
semanas em meio ao conturbado contexto político nacional, uma
quantidade significativa de textos sobre o assunto tem sido divulgada
pelas redes sociais, sobretudo católicas.
Da mesma forma, em diferentes sites
nacionais a reflexão sobre a ordenação de mulheres e a possível
constituição de uma comissão de estudo no Vaticano para o
diaconato feminino tem ocupado espaço significativo. Até uma
paróquia da zona leste da cidade de São Paulo organiza para breve
um debate sobre o tema. Muitos textos divulgados contam histórias de
mulheres que segundo a oficialidade da Igreja Católica foram
ilegitimamente ordenadas e, por isso, excomungadas. Calcula-se que
mais de duzentas mulheres estejam hoje nessa situação e entre elas
há também algumas poucas bispas, ordenadas sigilosamente por bispos
refratários às ordens vaticanas. A questão da ordenação das
mulheres sai de novo das catacumbas e começa a ver a luz do dia,
apesar de envolta em mil e uma dificuldades provenientes de posições
de grupos os mais diversos e divergentes.
Uma questão crítica
Reconheço que a efetivação da
ordenação de mulheres seria um passo que, segundo algumas pessoas,
poderia sanar em parte uma situação de desigualdade pública na
sociedade e especialmente na Igreja Católica Romana. Entretanto, é
preciso deixar claro que para muitas adeptas e adeptos da ordenação
de mulheres trata-se apenas da afirmação de um “direito” de
ambos os sexos de representarem Jesus Cristo diante da comunidade e
não necessariamente de uma reivindicação feminista. Em outros
termos, trata-se de pensar apenas na integração das mulheres ao
sacerdócio oficial guardando-se a mesma forma de pensar e viver a
Igreja. Critica-se a autoridade católica por não abrir espaços às
mulheres quando o que elas pedem é estar a serviço da Igreja em
diferentes tipos de trabalho e especialmente no ministério ordenado.
Quero apenas abrir algumas pistas de
reflexão frente a essa questão de complexa solução no momento.
A meu ver o problema crítico situa-se
justamente na consideração do direito das mulheres muitas vezes
tomado de forma bastante simplista. O que significa um direito quando
a instituição na qual se quer ter direitos é uma das que nega ou
que não apóia muitos direitos às mulheres? O que significa ter
direito numa instituição cuja ideologia teológica segue
valorizando e incentivando o poder masculino em detrimento de uma
visão mais participativa e diversificada de serviços, carismas e
poderes? O que significa ter direito à ordenação de mulheres
quando há uma visão do sacerdócio eminentemente masculina,
anacrônica e com uma secular simbologia teológica masculina? O que
significa esse direito quando outros direitos são frontalmente
desrespeitados? Será que a admissão ao sacerdócio ordenado traria
respostas a essas espinhosas questões?
A teologia sacerdotal vigente
A partir da teologia sacerdotal vigente
os padres são revestidos de poderes não apenas simbólicos, mas
poderes políticos e sociais que lhes permitem orientar vidas e até
manipulá-las ou dominá-las.
Usam muitas vezes dos textos bíblicos
como lhes convém e justificam suas escolhas como se fossem emanações
evangélicas. Sem dúvida as exceções sempre existem e não quero
esquecê-las. Mas, o mais comum é os padres concentrarem uma
autoridade sobre as pessoas e especialmente sobre as mulheres
mantendo e justificando de muitas formas as hierarquias que dominam a
terra. Essa concentração exagerada de poder impede a ascensão e
organização de ministérios ou serviços múltiplos a partir e em
favor das comunidades cristãs. Além disso, o modelo de sacerdote
que se apresenta é o sacerdócio de Jesus numa interpretação
judaizante que me parece cada vez mais distante das ações e
inspirações que descobrimos nos Evangelhos. Em vez de renunciarem
ao poder que os coloca em evidencia e ao lado de seus pares seculares
fortaleceram as alianças entre poder político, econômico e
religioso ao longo dos séculos. Impõem decisões e muitos atuam de
forma desrespeitosa, sobretudo quando o assunto refere-se à
sexualidade feminina.
Reconheço o papel social e cultural de
sacerdotes, pajés, mães e pais de santo, imãs nas diferentes
religiões e sua evolução na história contemporânea. Estes atores
e atoras sociais não são apenas os únicos “guardiães” da
tradição religiosa a que pertencem, mas líderes que deveriam ter o
coração colado às necessidades de suas comunidades. Dessa forma a
participação dos membros nos serviços e na construção de
significados atualizados seria uma responsabilidade comum. Isto
requer um constante diálogo e uma divisão de saberes e poderes para
responder aos sempre novos desafios do contexto em que se vive. Nesse
sentido não pleiteio a extinção do papel de pessoas mais
preparadas ou líderes éticos em relação aos conteúdos e
tradições religiosas, mas estas pessoas só deveriam ter sua
autoridade legitimada na medida em que estiverem em conexão com as
questões vividas pela comunidade.
Reforma política da Igreja Católica
Nessa perspectiva não penso que as
mulheres devam fortalecer um modelo de sacerdócio hierárquico
masculino e nem aceitar a ordenação a partir de uma teologia também
hierárquica no seu conteúdo e de simbologia fundamentalmente
masculina. No processo histórico atual não se fala de “reforma
política na Igreja Católica” o que seria a meu ver útil e
necessário. É como se a política e a organização atual da Igreja
proviessem diretamente de Deus, segundo a vontade de Jesus e se
apresentassem de forma imutável nos diferentes séculos da história
e nas diferentes culturas onde o cristianismo se implantou. Falar em
“reforma política da Igreja Católica” implica igualmente falar
de uma reforma das teologias que sustentam essas políticas de
caráter masculino patriarcal centralizador. E a reforma dessa
teologia vai revelar quase o óbvio, ou seja, a existência não só
de muitas teologias e interpretações, mas entre a vida ordinária
cotidiana e as teologias que sustentam a organização da Igreja nos
seus diferentes níveis. Em termos concretos estou querendo dizer que
uma coisa é a vida de cada dia e outra coisa é a teoria política
teológica de uma organização religiosa com suas leis e princípios
e, sobretudo com a diversidade de pessoas que dela participam. A
pretensa uniformidade dos dogmas, a legalidade das leis canônicas
escritas, apesar de sua utilidade, vão de encontro ao pluralismo das
situações e crenças presentes nas diferentes culturas e momentos
da História. A Igreja hierárquica nem sempre as respeitou, mas
muitas vezes as combateu como negações da verdadeira doutrina
revelada por Deus. É nesse contexto que também se pode falar das
teologias feministas e de sua crítica ao centralismo religioso e ao
corte eminentemente masculino de sua simbologia religiosa. Têm
denunciado com insistência os abusos do poder religioso, sobretudo
em relação à posse indevida da decisão sobre nossos corpos. Têm
reinterpretado de forma rica e contextualizada a Bíblia e as
teologias de forma a responder aos desafios atuais de nosso mundo.
Estas teologias são quase
absolutamente rejeitadas ou ignoradas pelos mantenedores da tradição
masculina, pois fogem do roteiro estabelecido por esta tradição.
Teologia feminista
Suspeito que boa parte do movimento em
favor da ordenação das mulheres não trabalha na linha crítica
assumida por muitas teologias feministas. Buscam apenas a igualdade
de gênero nos ministérios sem fazer perguntas às bases de
sustentação teológica e política da Igreja na atualidade.
Em geral, apenas visualizam o direito
das mulheres a exercer ministérios na Igreja Católica pré-definida,
na Igreja “universal” já constituída do ponto de vista de sua
organização hierárquica. É como se apenas ao se tornarem
presentes nas fileiras sacerdotais, as mulheres pudessem por sua
presença modificar algo do panorama real, visual e formal de sua
representação até agora unicamente masculina. Não ignoro a
importância do visual, das quotas de representatividade, mas apenas
isto não modifica por dentro nossas convicções. É preciso ter
claro quais os comportamentos sociais, políticos e eclesiais que
devem acompanhar a ordenação das mulheres. Que novas políticas a
Igreja vai assumir, que orientações se vai propor quando novos
“sujeitos”, os femininos, passarem a fazer parte de seus quadros
de direção e da liderança das comunidades nos diferentes níveis.
Estas são exigências que nós mulheres devemos fazer para não
assumir algo como se fosse um favor dos homens de Igreja ou um ato
magnânimo de concessão a nós simples mulheres.
Opino dessa forma porque conheço
algumas das sacerdotisas, pastoras e candidatas ao sacerdócio
feminino e minha impressão embora limitada e discutível, carrega a
percepção de que não conseguirão uma mudança qualitativa e
significativa na estrutura atual da Igreja Católica. Muitas apenas
pedem o sacerdócio, mas não expõem e nem exigem as condições de
seu lado para essa efetivação.
Trabalham como se a Igreja que deve
reconhecê-las fosse, sobretudo o episcopado e o papado, instituições
ministeriais masculinas. São estas que devem conceder-lhes a
autorização para servirem a comunidade. Elas, sem perceber, se
tornam ou se consideram menos Igreja identificando-a a hierarquia que
a governa. Algumas dessas mulheres sacerdotisas têm trabalhos de
ponta junto a populações marginalizadas e discretamente
reorganizadas por elas. Algumas têm até doutorados em teologia e
estudaram em universidades de renome internacional. E, no entanto,
essa capacitação não é reconhecida pelos prelados. Posso entender
a emoção e o desejo de muitas mulheres de se verem no altar, de
sentirem que presidem uma celebração eucarística publicamente e
que têm certo poder na comunidade. Posso até avaliar a emoção que
algumas narraram de poder levantar a hóstia e dizer “este é o
corpo de Cristo” como um sonho de infância esperando ser
realizado. Ou ainda a emoção de sentirem-se chamadas de ‘pastoras’,
‘madres’ (?), presbiteras ou diáconas numa paróquia. Não as
condeno, mas acredito que poderíamos ir mais longe e exigir bem mais
num diálogo que deveria ser entre iguais e não entre superiores e
inferiores.
Afetos e poderes absolutos e
domésticos
Nessa problemática da ordenação das
mulheres há um dado igualmente importante que nem sempre é
considerado. Trata-se do fato de o Cristianismo na sua forma católica
romana ser uma religião organizada a partir de fortes emoções
culturais onde o circuito dos afetos revela uma espécie de divisão
social de poderes que reproduz a sociedade na qual vivemos. A figura
masculina de Deus Pai, Filho e Espírito Santo reveste-se de poder
sócio-emocional absoluto enquanto que as figuras femininas como
Maria e as muitas santas revestem-se de poder absoluto doméstico,
cuidador, acolhedor, protetor e sanador. A representação sacerdotal
masculina aparece também emocionalmente ligada ao poder político
absoluto masculino, embora muitas vezes, o poder efetivo e decisivo
no imediato seja o feminino. Sabemos bem que a ordenação masculina
obedece a uma dogmática hierárquica masculina que no fundo começa
pela imagem de Deus Pai entregando poder a seu Filho único que envia
o Espírito perpetuado e simbolizado pelos sacerdotes masculinos.
Estaríamos nós mulheres, com o
advento do feminismo, do pensamento crítico e da teologia feminista
plural, dispostas a manter essa anacrônica hierarquia masculina?
Estaríamos dispostas a manter a diferença entre sexo masculino e
sexo feminino como desnível de capacidades que se expressa também
no desnível salarial no serviço às comunidades? Estaríamos
querendo manter a divisão social dos afetos e poderes de forma
mecânica e naturalizada? Um pequeno exemplo chama nossa atenção.
Hoje em muitas dioceses há uma discrepância salarial entre os
padres e as freiras e leigos por serviços semelhantes… A
discrepância salarial para além das necessidades de cada um reflete
mais uma vez a manutenção do privilégio das hierarquias masculinas
no interior da Igreja. A revolução de significados em curso nos
tempos de hoje não estaria indicando a necessidade de sair das
afirmações dogmáticas do passado e abrir novas possibilidades para
repensar a herança cristã para nossos dias? A expansão da luta
plural pelos direitos humanos não tocaria igualmente direitos mais
amplos na Igreja na diversidade de suas comunidades, organizações e
ministérios?
A naturalização
Outro aspecto importante nessa
problemática refere-se ao perigo de naturalizarmos os comportamentos
masculinos e femininos acreditando que todos os pertencentes a um ou
outro gênero e até mesmo os transgêneros, se comportariam da mesma
maneira. A naturalização significa tornar certos comportamentos
como pré-dados pela natureza ou por Deus e afirmar, por exemplo, que
a vocação sacerdotal das mulheres é o cuidado diário e não a
lida nas políticas públicas em favor do bem comum. Era isso que se
acreditava, por exemplo, em muitos países no tempo da luta
sufragista das mulheres. Não se pode mais acreditar que existem
tarefas ou trabalhos especificamente masculinos e outros
especificamente femininos como se tivéssemos identidades laborais
pré-definidas e comportamentos já pré-atribuídos a essas
identidades. De certa forma essas atitudes assemelham-se as de Jean
Jacques Rousseau e séculos depois ao do positivista Augusto Comte
que queriam educar as mulheres em função dos homens e da família e
buscavam preservá-las da política e dos vícios da vida social para
o benefício da sociedade, dos maridos e da educação dos filhos.
Além disso, consideravam as mulheres moralmente melhores do que os
homens a até vítimas ilibadas reservando a elas um lugar que nada
mais era do que uma reprodução talvez melhorada da naturalização
dos comportamentos sociais de gênero. Assistimos hoje a reflexões e
atitudes semelhantes embora com matizes e justificações diferentes.
Estas precisam ser desconstruídas para que nosso rosto humano
misturado apareça na sua complexidade e ambigüidade.
A história
Nesse contexto de “pedido” de
ordenação das mulheres não podemos nos esquecer também das
perseguições que prelados e funcionários da Igreja Católica
Romana exerceram e exercem em relação às mulheres. Acusadas de
bruxas ou de usurpadoras do poder de pensar que deveria ser apenas
masculino foram condenadas à morte ou perseguidas e castigadas
durante sua vida. De Ipazia de Alexandria (assassinada por ordem de
futuro São Cirilo de Alexandria), a Marguerite Porette ( condenada à
fogueira), a Joana D’Arc (condenada à fogueira) e Juana Inés de
la Cruz (condenada e proibida de escrever e ensinar) e, sem falar das
muitas contemporâneas, as figuras femininas massacradas por ousarem
penetrar nos átrios do saber teológico foram milhares. Será que
podemos esquecer estas histórias e também esquecer que nos séculos
XX e XXI as teologias feministas repensaram boa parte da tradição
cristã, mas que esse pensamento é minimamente conhecido além de
freqüentemente recusado pelos donos do poder e saber religioso? A
recusa a pensar de outro jeito é com freqüência característica
das hierarquias religiosas e políticas… Podemos acaso esquecer que
alguns eminentes personagens de nossa história atual até propõem a
‘ingenuamente’ a necessidade de uma ‘teologia da mulher’ ou
de uma ‘teologia feminina’ ignorando completamente o percurso já
feito durante séculos de história e particularmente da história
desses últimos 40 anos? E mais não aceitam sequer que se fale de
feminismo no interior da Igreja…
Continuam usando um conceito de
igualdade abstrata, igualdade diante de Deus, sem confrontar-se com a
real situação de violência e exploração vivida pelas mulheres. É
simplesmente lamentável…
Podemos acaso esquecer que ainda hoje
há interrogatórios, cartas de advertência, admoestações a
congregações religiosas femininas, a teólogas e filósofas que
acolhem o dom de pensar a vida como parte do serviço ao Movimento de
Jesus? Tudo se articula com tudo. Uma reivindicação não é um
pedido isolado de um conjunto. A ordenação das mulheres se inscreve
nesse complexo contexto de idéias e crenças clericais que governam
mentes e corações e mantém estruturas organizacionais anacrônicas.
Não pode haver um direito isolado da conjuntura em que ele deva ser
afirmado e vivido.
Situação ideal?
Muitas pessoas poderão alegar que
busco uma situação ideal para o exercício público do sacerdócio
ordenado feminino. De forma alguma. Sinto-me apenas chamada a ajudar
a refletir sobre velhas e novas questões em que algumas soluções
que parecem justas e igualitárias escondem os sinistros meandros do
fortalecimento de um poder hierárquico e patriarcal no qual
continuamos a viver, a nos alimentar e alimentar outras vidas. Antes
mesmo de aprovar esse sacerdócio como direito das mulheres, o que
não penso que o governo atual da Igreja Católica fará, teremos que
refletir sobre as condições do direito que pleiteamos e os limites
do modelo de sacerdócio vigente. Ao mesmo tempo em que este modelo
ainda presta alguns serviços à comunidade cristã, também a isenta
de muitas responsabilidades frente à construção de sentidos e à
organização plural da vida cristã. Por isso sou contra a ordenação
das mulheres como concessão, no estilo atual, pois esse é
igualmente limitativo e pernicioso para os homens e mulheres.
Tenho consciência, embora bem
limitada, da história das mulheres na Igreja Católica Romana e do
enorme percurso de lutas que nós percorremos no Cristianismo. Desde
a participação próxima e íntima no Movimento de Jesus até os
dias de hoje temos sustentado e vivido a fé, a esperança e a
caridade, sabendo desde as nossas entranhas que a caridade continua a
ser a maior delas. É nela e a partir dela que a reprodução de
modelos sacerdotais tradicionais na configuração atual do mundo
corre o risco de manter e até ampliar poderes autoritários que
desde muito tempo deveriam ter sido revistos e transformados à luz
do reconhecimento da outra/o como meu semelhante e meu diferente.
Tudo isso é apenas um convite ao pensamento…

Obs: A autora é  escritora, filósofa e teóloga.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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