domseb liberdade e obediencia

[email protected]
domsebastiaoarmandogameleira.com

(Retalhos do Quotidiano)

O que constitui a pessoa é a liberdade, e esta se realiza concretamente na vida diária mediante o amor (doação de si) realizado (feito real) no serviço. Ser livre é “ser em si”, ter a posse de si mesmo(a). Se persistimos em “ser para si” é que ainda continuamos sob o “regime da necessidade”, ainda precisados de segurança, agarrados(as) a nós mesmos(as), humanamente pobres de ser. Liberdade é o contrário de necessidade. Só somos mais plenos em nós quando somos “para além de nós”. É o milagre do amor: ser mais enquanto já não tememos perder-nos ao entregar-nos. Por isso, morrer de amor ou morrer por amor é o máximo grau de liberdade, pois já nem nos agarramos mais à “necessidade” de sobreviver. É assim, com alegria profunda, que amantes se entregam à morte; pais e mães morrem por suas crianças; mártires da Justiça e da Compaixão não temem morrer… Se não somos livres, somos apenas “indivíduos”, quase coisa, distinta, entre outras. O processo de individuação é o de “definição”, isto é, de estabelecimento dos próprios fins, a saber, dos próprios limites ou fronteiras em relação a outros objetos do mundo. Liberdade é não “necessitar”, não temer perder-se. Só se dá nas relações humanas, quando já não nos submetemos a ninguém nem a coisa nenhuma. É claro que, em nossa condição presente, ainda não somos plenamente livres, marchamos em caminhada de libertação. Liberdade plena só aquela do ser divino. Para nós, ainda é “vocação”, dinamismo que se vai concretizando na medida em que amadurecemos na relação com as pessoas e o mundo. A Psicologia nos ensina que a maturidade é condição essencial para desenvolvermos a capacidade oblativa, de entrega de si sem medo de perder-se. Quando, no quotidiano, assumimos “cumprir regras” ou seguir o caminho que nos é indicado por outra pessoa, não devemos fazê-lo por temor ou sujeição, seria renunciar a ser livre, mas por motivação de responsabilidade ética, ou seja, por responsabilidade frente a outras pessoas e ao mundo, e a nosso próprio crescimento.

Na Carta aos Gálatas, o Apóstolo São Paulo proclama que ser livre é a condição básica da vida cristã. Ou seja, ser cristã(o) é assumir o dinamismo antropológico constitutivo da pessoa humana: liberdade, amor e serviço. Na verdade, é este o assunto mais recorrente nos evangelhos e nas epístolas do Novo Testamento, baste consultar textos como o Evangelho segundo Marcos, sobretudo do capítulo oitavo em diante, e o 4º Evangelho, e a primeira epístola de São João. Já serão suficientes para nos convencer disto. Em Gálatas, com muita força, o Apóstolo proclama: “É para a liberdade que Cristo nos libertou. Permanecei firmes, portanto, e não vos deixeis prender de novo ao jugo da escravidão” (cap. 5, 1). E insiste: “Vós fostes chamados(as) à liberdade, irmã(os). Entretanto, que a liberdade não sirva de pretexto para a carne, mas, pelo amor, colocai-vos a serviço uns dos outros” (ibd. v.13).

É muito comum elencar a obediência entre as virtudes morais, isto é, uma virtude que se pratica nas relações humanas. Estamos aí num sério equívoco de princípio. Na verdade, uma vez libertados(as) em Cristo, já não podemos sujeitar-nos à vontade ou decisão de ninguém. Já não podemos dizer: “Estou justificado porque cumpri a lei”, ou “que jeito, fulano mandou”. Um dos provérbios mais perversos é: “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Nossa consciência profunda nos diz que somos livres. Só devemos obediência a Deus: “ob-audire”, escutar (“audire”, ouvir) voltando-se (“ob” sugere o movimento do ouvido na direção de outra pessoa) para a escuta de Sua Palavra. Só Ele pode indicar o caminho obrigatório, pois é a fonte mesma de nosso ser, só Ele nos conhece “de fábrica”; por isso, ao tomar-nos nos potencia. O Apóstolo Paulo fala de obediência como “obediência da fé”, ou seja, “obediência que é a fé” (Rm 1, 5), dimensão de uma “virtude teologal“, que diz respeito a Deus e a Ele nos assimila. Só a Deus devemos obediência, só a Ele nos podemos entregar com total confiança, como se dá na relação Pai e Filho na Trindade.

Por isso, o agir humano, para corresponder a essa dinâmica antropológica e teologal profunda, não se pode fundar em “princípios” legais (lembremo-nos do que nos explica o Apóstolo a respeito da vigência da Lei, cf. Rm 7 e 8) ou mesmo em princípios morais, muito menos na vontade ou imposição de outra pessoa. O que se nos impõe de fora pode, ao máximo, funcionar como “conselhos” ou sugestões, nunca como motivo último de nossa obediência. Só se pode obedecer a Deus, como dizem corajosamente os apóstolos diante do tribunal: “Julgai se é justo, aos olhos de Deus, obedecer mais a vós do que a Deus?” (At 4, 19). Em outras palavras, seguir a palavra (ou as ordens) de outro ser humano só é humanamente nobre se nela achamos alguma razão que nos convença de que estamos a obedecer a Deus. Mesmo que a situação nos seja obscura, só podemos obedecer se aí, pelo menos, entrevemos motivos para perceber que algo nos parece vindo de Deus. Do contrário, será sempre idolatria, mesmo que venha de instituições religiosas que pretendam falar em nome de Deus, e ídolos são o que nos escraviza. Por isso, é na prece, na “oração da vigília”, como fazia Jesus, que tomamos a última decisão de obedecer ou não. A prece é aquele “lugar” onde buscamos unificar nossos projetos com a vontade do Pai, segundo o exemplo de Jesus (cf. Mc 14, 35-36). Mesmo quando a Bíblia nos recomenda obedecer às autoridades deste mundo, não enxerga nelas a última fonte para nossa obediência, ao contrário, diz-nos que “é necessário submeter-nos, não por temor de castigo, mas por dever de consciência”(Rm 13, 5). Ora, a consciência deve ser nossa regra última e interior, nunca exterior. Famoso historiador inglês, ao referir-se a esse texto, alertava: os poderosos se sentem justificados ao ler tal texto; esquecem, porém, o perigo presente no motivo alegado, pois o Deus que manda obedecer “por motivo de consciência”, pode em, outra circunstância, ordenar desobedecer…

Por isso, a obediência para ser como a de Jesus, ou seja, gesto humano e livre, tem de assumir o risco de reconhecer e seguir, em determinado momento, a vontade de Deus, que se nos revela pelas circunstâncias da vida e por sinais que nos vêm de outras pessoas. Daí, a necessidade de discernir qual é a vontade de Deus no momento, pois só a Ele devemos obedecer (cf. Rm 12, 1-3). Diante de uma norma humana, esse discernimento será sempre um risco: é igual risco obedecer (poderemos estar nos sujeitando a um ídolo), assim como não obedecer (podemos estar nos rebelando contra Deus). Esse risco, nós o corremos sempre e dele temos de assumir a responsabilidade, pois, como diz a Escritura: “O que não brota da consciência (o termo grego é “fé”), ou seja, da fé que motiva a consciência, é pecado”.

Não devemos nunca identificar a virtude da obediência, que só se deve a Deus, por isso é sempre “obediência da fé”, com atitude passiva de quem abdica das próprias responsabilidades para se abandonar a qualquer vontade humana alheia. Não vale alegar que o “superior” (linguagem infeliz!) é sempre representante da vontade de Deus. Cairíamos aqui na idolatria por renunciar ao discernimento da liberdade. Pois, ao obedecer a qualquer autoridade ou norma humana, devemos ter o mínimo de segurança de que estamos nos submetendo à vontade de Deus. O que exige reflexão, análise, crítica, coragem e também generosidade e capacidade de autocrítica. Mesmo na vida religiosa, a obediência não pode significar um “estado permanente” (p. ex. cegamente sempre obedecer), mas um sempre renovado “acontecimento” de escuta da Palavra (“ob-audire”), um deixar-se interpelar sempre de novo pela vontade de Deus, e só d’Ele, o que exige discernimento constante das mediações humanas. Não podemos sair desse embate com a sensação de que “fomos obrigados(as)” a submeter-nos e a “fazer a vontade do superior”. Temos de sair com a sensação de que “cumprimos a vontade de Deus” e só d’Ele. Do contrário, adoramos ídolos, e os ídolos enganam, sacrificam e “matam”. Basta ler a Bíblia, sobretudo textos proféticos e sapienciais.

Naturalmente, esta noção bíblica de obediência exige uma vivência da vida em sociedade e, mais ainda, da vida e imagem da Igreja, como comunhão fraterna, animada e dirigida pelo Espírito Santo (cf. 1Jo 2, 27-28). Idealismo? Por mais que o pareça ser é, na verdade, o “trilho” do Evangelho, é o caminho da liberdade que nos humaniza em comunidade. Uma vez, há já muitos anos, num momento de crise e conflito, dizia um bispo católico-romano: “Mas, quem segue o Evangelho, precisamos da lei canônica”. Só que não é possível pensar a fé bíblica e o comportamento cristão senão na perspectiva da liberdade e do discernimento da consciência pessoal. Pois a vida cristã não é canonização da “realidade” de fato, das estruturas do presente; é o anúncio da possibilidade do novo, do “ideal”, do que ainda não é, para ter energia de edificar o futuro de Deus. Não é a conformista constatação do “mundano”, do “natural”, mas afirmação do “humano”, do que está para além do “natural”. Com efeito, a história o mostra muito bem, “não é natural para o ser humano “ser humano”. Será sempre a velha história de ter de “nascer de novo”, isto é, “do alto” (cf. Jo 3), do que está para além da mesquinhez deste mundo, quer dizer, do agora e das relações usuais de poder e posse, alicerce da dominação. Infelizmente, chega a haver situações em que pessoas tenham de renunciar à liberdade por sujeição afetiva, por medo de perder ou, ainda pior, de perder-se, ou até por dependência financeira. “A obediência cristã é aquela atitude de irmã(o) que facilita o trabalho de arbitragem (discernimento) de outro irmão, não a atitude de servo” (cf. Jo 15, 15).

Obediência sempre põe em jogo o que há de mais radical na pessoa, a liberdade em construção. Não se trata apenas de uma questão legal ou “canônica” (algo prescrito), nem mesmo de algo no nível da moral (o que a sociedade ou alguma instituição considera apreciável), ou, mais forte ainda, de algo que diz respeito à ética (responsabilidade em face das outras pessoas). Trata-se de algo bem mais profundo e complexo, ou seja, de nível antropológico e teologal, de assumir a atitude típica do Filho diante do Pai, em completa e amorosa confiança; situa-se no que costumamos chamar de espiritualidade, do que revela “de que espírito somos”, algo que diz respeito à vida segundo o Espírito de Deus.

Roma, 20. Agosto. 1972 (publicado agora com leves retoques)

Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….

Imagem  enviada  pelo autor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]