Padre Beto 15 de fevereiro de 2017

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O padre católico Henri Kremer é preso e enviado para um campo de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Sua liberdade acaba se tornando o centro de negociação entre o governo nazista e a Igreja Católica. Esta última se encontra entre o conflito ético de apoiar as práticas nazistas salvando assim a vida de seus membros prisioneiros ou manter-se coerente com o discurso cristão. Para fazer com que a Igreja tome uma decisão, Kremer é solto e possui somente nove dias para influenciar sua instituição. Este drama ético é fio condutor de “O 9º Dia”, filme do alemão Volker Schlöndorff, que nos leva a compreender que na busca pelo poder político, estratégias são criadas para que os verdadeiros conflitos não se tornem transparentes para a maioria da população.

Na Grécia antiga, uma das formas de expressão social era aparentar ter uma cultura vasta, um saber erudito. Para Epicuro, paidéia consistia justamente na estratégia de adquirir saber simplesmente com o objetivo de glória. Paidéia era uma maneira de ostentação erudita para a construção da reputação das pessoas, uma espécie de saber de jactância, de vaidade ou arrogância. Muitas pessoas procuravam adquirir conhecimento para obter entre os outros uma reputação que, de fato, em nada se assentava. Paidéia, segundo Epicuro, era o conhecimento que servia para jactar-se entre os outros e ser apreciado pelas massas, o grande objeto dos “artesãos do ruído verbal”, daqueles que falavam muito, mas diziam pouca coisa. Esta estratégia chamada pelos gregos de paidéia não se constitui em uma forma arcaica de criar e manter a aparência. Muito pelo contrário, em nossa contemporaneidade ela se ampliou não se limitando mais ao uso da palavra, dos lindos discursos, mas em diversas estratégias que projetam e procuram manter a imagem. Nós vivemos em uma sociedade da imagem e muitas pessoas se esforçam em criar e manter sua aparência para a sua própria ostentação.

Epicuro era um severo crítico da paidéia e a contrapunha ao que ele chamava de physiología. A fisiologia, para o filósofo, possuía o objetivo de construir seres humanos altivos e independentes, que se orgulham de si próprios e não de sua imagem diante das circunstâncias. O objetivo da fisiologia não era a aparência, mas a vida concreta. “O que o mestre é vale mais que os ensinamentos do mestre” (Karl Meminger). O indivíduo fisiológico era aquele que não se preocupava com a opinião do grupo, mas com seus próprios princípios e, portanto, adquiria liberdade, ousadia, coragem e uma espécie de intrepidez que lhe permitia afrontar não apenas as múltiplas crenças que se pretendia impingir-lhe, como igualmente os perigos da vida e a autoridade dos que lhe pretendiam dominar. Estes indivíduos eram essencialmente autônomos, ou seja, não dependiam da opinião e aceitação dos outros. “Um homem aberto à adulação é um homem perdido” (Arturo Graf).

Por fim, os indivíduos fisiológicos possuíam, para Epicuro, uma verdadeira parrhesía que significava franqueza, simplicidade e liberdade no uso da palavra. “Simplicidade é a glória da expressão” (Walt Whitman). Mas seu significado era mais profundo. Parrhesía era uma determinada sensibilidade que permitia utilizar as palavras e os atos como convém. O que era uma consequência natural, pois a pessoa que não vive em função de sua imagem, mas se preocupa com a coerência entre seus pensamentos e seus atos, não somente adquire autonomia, como também liberdade para, nas diferentes circunstâncias, fazer uso do que é útil, do que é eficaz para a transformação das pessoas e melhoria da vida. Como essas pessoas não possuem medo de perder o prestígio ou a adulação dos outros, não estão atrás de glória e títulos, possuem maiores chances de serem francos e agirem com sinceridade procurando ajudar com pensamentos autênticos. “As cabeças ocas são doidas por longos títulos” (Provérbio alemão). Juntamente com esta característica somava-se a serenidade. Como para o fisiológico o valor absoluto era sua coerência de vida, ele não vivia com a preocupação de ser esquecido e não ter mais fama. Sua própria vida lhe bastava e, portanto, todas as suas ações eram acompanhadas de serenidade. O fisiológico, ao invés de querer manter uma imagem, concentrava-se em um viver autêntico, o que significava ter a consciência tranquila. Quando Epicuro contrapõe aquele que deseja ostentar-se pela aparência ao fisiológico, nos faz lembrar do juramento daquele que, na Idade Média, se tornava cavaleiro: “Não demonstre medo diante de seus inimigos. Seja bravo e justo e Deus o amará. Diga sempre a verdade, mesmo que isso o leve à morte. Proteja os mais fracos e seja correto” (do filme “Cruzada”).

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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