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Que inteligência anteporia a aparência ao conhecimento primeiro da realidade? Ou, à frente de tal quesito, que fera bravia insta em manter-se no escondedouro, no fingimento? Há de mister que se açule tal animal, animal que premedita, a fim de que exponha à vista o que traz de valioso. Não há coragem arrebatadora para isto… Quem poderá fomentar o animal da aparência? Segundo Nietzsche, é o filho de Latona e Zeus, irmão de Ártemis, o pai de tudo o que nutre o disfarce. Contudo, tal idéia nada desentenebrece. Bradam ainda os desregrados amigos dos valores… perguntam outras vezes: “O que há de tão valioso no ilusório?”.

Assim como no arremessamento de uma ou outra pontiaguda haste, diz Apolo que é na aparência que passa à posteridade a liberdade. Que conceito mais estrambótico! Como ser livre na aparência? O que há de liberdade no falso conhecimento, na ilusória apreciação da realidade de primeira ordem?

A liberdade da ilusão apolínea encontra-se no livramento do conhecimento. Quiçá haja corpulenta parecença entre o olor do conceito de representação de Schopenhauer e a fragrância do animal que premedita. E, neste sentido, a libertação seria do pressentimento da dor do mundo. Da dor do mundo dionisíaca. Libertação que toma como aliada a afirmação, ao ponto de confundir-se com seu sequaz cúmplice, desencadeando toda agitação convulsiva, que é, em mui macambúzio espetáculo, iludida na arte de Apolo.

A dor que traz Dionisos não o faz sofrer. Esta é a idéia de primeira ordem, pois para o deus do delírio místico, a simplória suposição do mesmo não suportar o peso mais pesado, assim como pesado é o pensamento não representativo do mundo, configuraria incomensurável paradoxo. Afirmar-se a cada ocasião azada é a sina do deus da vinha. A sorte de que não há nem se quer fugir. Em suma, é, Dionisos, a afirmação de tudo o que é a favor da vida abundante, repleta de vigor, de vigência, de robustez sanguinária. Ao contrário, é o abrandamento de tudo o que é instinto a personificação de Apolo, pai dos Coribantes.

Mas como pôde tal sacerdote da Frígia, um Coribante, filho de Apolo, ter dançado aos estridulantes brados? Não seria a dança ao som de címbalos e flautas uma característica de Dionisos? Ora, mesmo que fossem Dionisos e Apolo constituintes do antagonismo mor, ainda restaria o obscuro de Éfeso a alvitrar que “Do arco o nome é vida e a obra é morte”[i]. Ou seja, na unidade, no arco, coexistem porções conflitantes, quinhões que pelejam até derradeira baga de todo rubro líquido.

Sobrevive ainda a questão: que unidade oferece Dionisos e Apolo? Quiçá muito poucas o fazem com nobre estilo, não obstante na tragédia é proporcionado veementemente nobilíssimo tom na unidade apolínea e dionisíaca. Ora, o desafio trágico fundamenta-se na natureza da desenvolução da trama, característica comum desses dois deuses pertencentes à segunda geração dos Olímpicos, pois pressupõe, o transcorrer da trama, a articulação de duas noções que desembocarão na excitação trágica.

De um lado Apolo, deus que simultaneamente agrada e castiga, mostra e esconde. Deus do enigma, do não se mostrar completamente. Do outro, o deus da afirmação desenfreada, do prazer no escorrimento de vermelhaço sumo. No contexto de ligação e implicação das divindades, se dá a tragédia, o desafio trágico.

Declarara certa vez o oráculo que o oriundo de Jocasta mataria o pai. Que maldição esperaria o menino de pés inchados! Este, disposto à negação da realidade vindoura, agarrou-se com a maior das veemências à medonha de Apolo e deixou de afirmar a sua saga.

Todavia, há de se tornar mais dionisíaca a tragédia. Leva inevitavelmente o homem, inclusive o neto de Lábdaco, ao desafio trágico e este encontra-se face a face com a dor do mundo, com a realidade dionisíaca que muito grita.

A Esfinge aparece personificando toda a possível desgraça. Há uma bifurcação, um dos caminhos deve ser privilegiado. Transfigura-se no rosto de Apolo a peleja dionisíaca, está-se no ápice trágico. Édipo responde que é o homem o ser que caminha ora com dois pés, ora com três, ora com quatro e que, ao contrário do senso comum, inversamente proporcional ao número de suas pernas está a sua fortaleza. A Esfinge é concutida pela resposta à sua questão. Esta, precipita-se das altitudes do abismo. Precipita-se com o grande prazer que apenas a afirmação dionisíaca pode proporcionar.

Desta feita, Sófocles cria homens trágicos. Homens que percorrem os campos dionisíacos e apolíneos, que se lançam ao abismo com mui euforia e que se mantém em segurança. Sófocles representa a propensão do espírito grego. Espírito grego da grande afirmação aristocrática, pois, é fato que

A tragédia é a criação artística mais característica da democracia ateniense; em nenhuma outra forma de arte são apreciados tão direta e claramente quanto nela os conflitos internos da estrutura social de Atenas. Os aspectos externos de sua apresentação às massas era democrático, mas o conteúdo, as sagas heróicas com sua perspectiva trágico-heróica da vida, era aristocrático. Desde o começo, a tragédia dirige-se a um público mais numeroso e variado do que aquelas distintas assembléias à mesa das quais se recitavam as baladas heróicas ou os poemas épicos. Por outro lado, faz inegavelmente a propaganda dos padrões do indivíduo de coração generoso, do incomum homem eminente, consubstanciação do ideal de kalokagathia. Sua origem devia-se à separação do líder do coro do próprio coro, o qual convertia a execução coletiva de canções em diálogo dramático — e essa separação, por si só, marca uma tendência para o individualismo.[ii]

Parecia que a fortaleza da aristocracia, da vitória dos instintos  afirmativos estava assegurada. Mas que estranha causa desmoronaria ou derribaria este castelo intrépido e audaz? Que idiossincrasia possibilitaria tão vândalo ato?

Ora, a destruição de característica tão aristocrática só pode ser originada por um não aristocrata, um plebeu. Não um plebeu qualquer, mas o plebeu que era admirado pelos aristocratas. E, de fato, tal homem de inenarrável frialdade, destruiu os seus admiradores para se aprazer com a revolta e a vingança contra os que o acolheram. Este estranho e feio homem era, segundo Nietzsche, conhecido por Sócrates.

Sócrates viu enfermidade no espírito do homem grego, e no intuito de curá-lo, ofereceu-lhe o pior dos venenos para o povo que se afirmava veementemente. A razão, fora do escopo do complexismo homeopático terapêutico, parecia mais um clister que introduzira em si mesmo Sócrates para tornar-se hábil e curar os gregos da moléstia que só ele via.

Tudo o que era instinto, afirmação e robustez de vida dava lugar ao ascetismo. Perdia espaço e os homens tornavam-se vítimas do mesmo vício. A razão, mais uma vez,  fazia-se clister, mas agora para todos os gregos e estes, como que envolvidos pelos gritos silenciosos do plebeu, recebiam o medicamento e misteriosamente nada sentiam. Sócrates antes de curador era doestador dos instintos helênicos.

A humanidade fora infectada. Tornara-se escrava dos ditames racionais. Que homem saberia o antídoto para a dose socrática? Quiçá tenham sido Nietzsche e Kierkegaard os químicos responsáveis pela elaboração do contraveneno capaz de tornar novamente o homem afirmativo. De mostrar ao homem como se tornar o que é. De fomentar, sem sofrimentos, todos os instintos silvícolas, habitantes do emaranhamento que representa a vontade de poder trágica residente na impossibilidade da humanidade tornar-se sobre humana.
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[i] HERÁCLITO DE ÉFESO. Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, Fragmento 48, p. 92, 1996.
[ii] HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, p. 34-35, 1995.
Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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