A Praça da Santa Cruz teve seu chão nivelado. As árvores com os galhos aparados, foram embelezadas, adornadas e iluminadas por rosários de luzes das gambiarras. As barcas do pai de Zé Costa, a onda de Zeca do Vinagre, o trivoli de Miguel Fagundes e o balanço do pai de Carrasco estavam armados. As bancas de jogos de azar e a mesa de arroz de galinha de Geóba ocupavam os seus lugares no dia da festa. As ciganas já caminhavam pelas ruas a vender quinquilharias e a ler as mãos para predizer o futuro. O alvoroço que causava a passeata do Armarinho Tem-Tem guiada por Fefi e Papai Noel atiçava e atraía a população para o evento mais esperado de toda a região: a Festa de Natal de Itabaiana.
Atormentava-me uma preocupação persistente de ser adulto, antes de o tempo promover as mudanças necessárias, e pedi a Papai Noel de presente, um cinturão. Vestir roupas de criança quando já me achava capaz de lidar com a vida era algo que perturbava a minha alma. O suspensório passando por cima dos ombros e preso ao cós era o anúncio de que eu ainda era criança.
Desejava usar cinturão. Na ausência de sapatos, coloquei embaixo da cama um par de alpercatas de couro cru que havia ganhado de meu avô poucos dias antes. Para não espantar Papai Noel com o odor fedido do couro, passei brilhantina Madeira do Oriente nas alpercatas. Estava ansioso à espera do cinturão, que representaria um prolongamento da minha evolução, o início da fase adulta. Deitei na cama e tive dificuldades para manter o sono durante a noite. Quando acordei em definitivo, a luz do sol ainda ameaçava iluminar mais intensamente o quarto. Pulei da cama com bastante rapidez e agachei-me para pegar o presente. Passei a mão duas ou três vezes sobre as alpercatas e não encontrei o cinturão. Conferi com os olhos em vão. Uma intrusão desagradável tomou meu corpo. As pernas e os braços perderam a força e minha alma foi tomada por intensa melancolia. Vivi a experiência de ser rejeitado e mesmo sem o presente fui à praça sentir o clima das comemorações.
Muitos perceberam que eu estava diferente. Minha face refletia a decepção. Permaneci calado enquanto observava, um a um, cada menino com seu brinquedo. Alguns fitavam minhas mãos vazias com olhares críticos e ferinos. Não respondia às provocações dolorosas. Voltei para casa porque precisava falar comigo mesmo e chorei por alguns minutos.
Eu fazia meus deveres da escola, obedecia, mesmo sob ameaças, às ordens da minha mãe, ia à igreja na maioria dos fins de semana, sentia-me capaz de lidar com a vida e já trabalhava. Só brigava se desafiado e meu coração era infinitamente ameno quando comparado ao de Gustinho, ao de Edvaldo e ao do filho do gerente do banco. Deus deu a eles casa grande azulejada, com jardim na frente e garagem ao lado. Deu carro, radiola, liquidificador, roupas bonitas e sapatos de fábrica. Comiam bolachas Cream Crackers, Tupy ou Pilar e merendavam grandes bombons de chocolate. Muitas vezes desejei comer um destes.
Papai Noel repetiu Deus e doou aos ricos bicicletas, velocípedes, relógios, carros com luzes coloridas, cornetas e bonecas que choravam e dormiam. Deus e Papai Noel não ouviram minhas preces e negaram-me um cinturão. Julguei-me apartado de todos da praça. Soprei o balão de borracha de aniversário que ganhei do Armarinho Tem-Tem, até ele finalmente estourar e senti um alívio profundo.
Criaram Deus muito famoso e justo, mas quem é perfeito não doa aos ricos e exige com seus mandamentos sacrifício dos menos contemplados. Meu coração fora invadido por imensa sensação de injustiça. Minha alma estava fuzilada, senti minha fé diminuir ou sumir e meus princípios de religiosidade pulverizados.
Lembrei que Deus deu a cana da qual se faz a cachaça, a uva da qual se faz vinho, a folha da qual se extrai a cocaína e o chumbo usado para criar munição. Lembrei mais ainda, de que Deus fez o homem à sua imagem e semelhança. Foi quando realmente cheguei à conclusão de que criaram Deus e Papai Noel como seres da mesma laia.
Perdoei aos dois e fui feliz à Praça de Santa Cruz misturar-me às outras crianças, porque ainda não era adulto.(06/01/2017)
Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.