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“O povo que andava nas trevas viu uma grande luz…” (Is 9, 1)
Entre as histórias do Natal, aparecem os pastores (cf. Lc 2, 1-20). Exercem profissão desprezível e mal afamada, são gente da noite e da periferia. Ao mesmo tempo, lembram Davi, o pequeno pastor de Belém (cf. 1Sm 16, 1-13), o rei que a Bíblia idealiza como figura de pastor, do jeito que um rei devia ser para seu povo (cf. 1Sm 17, 32-58; Is 9, 1-6; Jr 23, 1-8; Ez 34, 23-31). Não dominador, mas companheiro, pequeno entre pequenos, o que chamamos hoje de “poder popular” (cf. Zc 9, 9-10; Sf 3, 11-13). Finalmente, já apontam para a tarefa que deve ser assumida por Jesus em meio a um povo disperso, “como ovelhas sem pastor” (cf. Mc 6, 34; Jo 10). O conto nos diz que os pastores estavam pelos campos, em plena escuridão da noite. Quem sabe, imagem forte de nossa noite, a noite do povo, que se faz agora muito mais escura pelo mundo inteiro (cf. Is 9, 1-4).
De repente, têm de levantar-se e apressadamente caminhar naquela noite de inverno. Como fazê-lo, se estão justamente a cuidar de suas coisas, de suas ovelhas, de seus interesses? Mas obedecem a uma intuição que lhes vem dos céus, de que mais adiante brilha uma luz que “pode alegrar todo o povo que anda nas trevas” (cf. Lc 2, 10-11). Ainda não sabem bem de que se trata, mas têm coragem de levantar-se e apressadamente sair em conjunto, solidariamente, embora na escuridão da noite.
A Bíblia nos ensina que Deus caminha com Seu povo, como Pastor, mediante lideranças humanas, desde o êxodo da antiga opressão debaixo dos impérios deste mundo (Ex 3, 14 e 15; 32, 1; Sl 23). Por isso, o Apóstolo São Paulo nos diz, com muita ênfase, que ”a sabedoria e a força de Deus” estão no povo (cf. 1 Cor 1, 17-31). É que, ao contrário de ricos e poderosos, é o povo que trabalha duro e, realmente, mantém a vida e transforma o mundo; é ele que tem realmente intimidade com as alegrias e as penas de cada dia. Não “sofisticam”, isto é, não falsificam o real, o quotidiano da vida, ao contrário, a conhecem intimamente, “de experiência feita”. Ricos e poderosos têm aparência de fortes, afinal gozam de poder e posses, porém quem os sustenta, quem os carrega em seus braços finos, mas fortes como aço? Quem lhes proporciona de comer? Quem morre em seu lugar nas guerras que “vencem”? Ricos e poderosos têm pés de barro, como a estátua do Império, na visão do grande reino no livro de Daniel (cf. Dn 2). Sim, é no povo que está “a sabedoria e a força de Deus”, a capacidade oculta de saber e de fazer. Infelizmente, com muita frequência, o povo não sabe disso. Os pobres são ensinados a se convencer de que são fracos e impotentes, e em tudo dependem do Poder. Todo dia se repete nas coisas e nas pessoas que ”é assim mesmo”, foi Deus quem nos fez assim, diferentes, “desiguais para a harmonia do conjunto, os pobres existem para que os ricos se tornem virtuosos em ajudá-los”, palavras assim disseram vários papas e tanta gente da classe poderosa assim prossegue tranquila em seus caminhos… É o que se chama de “ideologia”, discurso falso que ilude e falsifica a vida, e é produzido para encobrir as verdadeiras causas da divisão injusta e da opressão; ao longo do tempo, ”a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante”, que “faz a nossa cabeça”. Mas a palavra do Apóstolo persiste viva: “a sabedoria e a força de Deus” estão no povo”, naqueles(as) que são tidos(as) como “lixo do mundo”. Evangelizar é desmascarar a ideologia (“sabedoria do sistema deste mundo” – v19-25), mostrar que é mentira e, assim, arrancar os pobres de seu abatimento (cf. 1Cor 1, 17-25). Não já temos experimentado que quando o povo decide não há “grande”, não há governo que não seja vencido? A grande questão, porém, é o povo chegar a romper com a “ideologia” e, realmente, decidir seu destino. O aparato de força, instalado nas ruas contra o povo, é sempre sinal de fraqueza, de que se teme o povo organizado. Quantas vezes não temos gritado nossa crença: “Povo unido jamais será vencido”?
Mas a quem é pobre e oprimido, ao receber o anúncio da Manjedoura e da Cruz, que equivale a proclamar que a solidariedade de Deus é com as pessoas marginalizadas “da noite” e crucificadas pelo sistema de poder deste mundo, ao receber este anúncio, é chamado a aceitar que nele está a verdade da vida e converter-se. “Converter-se” começa por decidir-se a caminhar apressadamente na escuridão da noite. Para isso, é preciso caminhar em grupo, coletivamente, porque as trevas podem reservar surpresas más. Isto significa novoentendimento da realidade vivida, que começa por perder a fé nos poderosos e no sistema da riqueza, e só crer em Deus e em Sua força presente nos pobres (cf. 1Cor 2, 1-5).
Papa Francisco é uma das figuras mais luminosas destes tempos de trevas. Em seu aniversário, prefere tomar café da manhã com mendigos(as) e lança em nossa direção o apelo que vem de Deus: compreender que este sistema dominado pelas finanças do Dinheiro (cf. Mt 6, 24) é assassino (lembremos a guerra na Síria que caminha para meio milhão de mortos, a Palestina criminosamente invadida pelo Estado de Israel, as pessoas sem pátria a perambular, sem destino, em busca refúgio em noite de flagelo, muros se constroem nas fronteiras, a África sempre mais destruída, a violência a nossa porta cada dia…); compreender que os poderosos são hipócritas, pois provocam e comandam a morte do povo, o mundo com cada vez menos gente a dominar e possuir quase tudo, e exibem suas mãos macias e bem lavadas do sangue derramado e da corrupção desenfreada (cf. Is 1, 15-17; Am 4, 1-3; 5, 21-27); a salvação só nos pode vir do Povo (cf. Sf 3, 12-13). Por isso, em seus encontros com representantes de Movimentos Populares do mundo todo, lança o alerta de “três Ts”: nenhuma família sem teto, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem trabalho; e, profeticamente, brada a nossos ouvidos: não se submetam à opressão, rebelem-se e se organizem. Na verdade, não há outro caminho para clarear a estrada, calar o surdo “barulho das botas prepotentes e queimar as fardas manchadas de sangue” (Is 9, 1-6).
Na noite que se faz cada vez mais escura, o clarão só nos vem da Luz de Deus, que, ao se refletir na face de Cristo, ilumina nossos rostos (cf. 2Cor 3, 17-18) e nos torna “luz para quem jaz nas trevas”. Não há outro caminho. Temos de nos juntar cada vez mais, buscar na noite o novo entendimento que esclarece nossas mentes e nos organizar “em grupos de cem e de cinquenta” (cf. Mc 6, 40), como nos diz a Bíblia quando fala das batalhas de Deus. Só nossaorganização pode ser luz nesta densa noite dos pobres do povo!“
“O povo que vagava nas trevas viu uma grande luz, e uma luz brilhou para quem habitava uma terra tenebrosa” (Is 9, 1).
Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….
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