Maria-Clara23

(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio)
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E mais uma vez é Natal.  Mais uma vez o ritmo da vida se torna frenético por algumas semanas, o trânsito insuportável, as lojas repletas.  Mais uma vez as pessoas se acotovelaram com listas nas mãos, comprando presentes inúteis e supérfluos em sua maioria, para outras pessoas que deles não necessitam.

E mais uma vez é Natal. Mais uma vez os supermercados aquecem suas vendas com os inevitáveis perus, pernis, presuntos tender e frutas secas. Homens vestidos de Papai Noel desidrataram-se sob o calor tropical, com longas barbas brancas para estimular nas criancinhas desde cedo os desejos de consumo de presentes a não mais poder.

Mais uma vez é Natal.  E uma vez mais aqueles para quem nunca é festa continuarão sem ter nada para celebrar.  Mesmo com as meritórias campanhas do Natal sem Fome, das ceias organizadas por esta ou aquela igreja, sempre haverá gente sob as pontes, nas ruas, que não tem sequer para onde ir, nem onde morar, nem onde comer na noite de Natal.

Mais uma vez é Natal e a ocasião desta festa porá a nu os contrastes injustos e inexplicáveis de que é formada nossa sociedade, onde o que sobra para uns não vai suprir a falta e as carências de outros.  Mais uma vez as festas em família se farão sobretudo em torno de comida e presentes, e quando o último gole de champanhe for saboreado, juntamente com a última fatia de peru, o tédio se abaterá sobre mais uma festa  sem que se saiba o que foi celebrado.  Ou melhor, esqueceu-se o motivo da sua existência e celebração.

Porém, mais uma vez é Natal e será verdadeiramente Natal em alguns lares e em algumas vidas nas quais a escala de valores e prioridades se harmoniza com o Mistério que é a razão de ser da festa. E mais uma vez será vivido com devoção e profundidade o evento de salvação, o Mistério inaudito do Amor de Deus, que toma carne em um indefeso Menino que nasce de uma pobre mulher e não tem lugar para ficar, a não ser o estábulo onde dormem e comem os animais.

Mais uma vez é e será Natal para gente que celebra na simplicidade este Mistério do amor humilde e oblativo de um Deus que não se aferra a suas prerrogativas e se faz carne, se faz criança, se faz um de nós, em um mundo dividido e violento.  Mais uma vez é e será Natal para aqueles e aquelas que, mesmo nomeando-o de diferentes maneiras, acreditam que Esse que vem na forma de criança indefesa e desvalida é o Único capaz de trazer a paz, a harmonia, a concórdia a este mundo que insiste em destruir-se a si mesmo.

Nossa sociedade e nossa cultura são tão pobres e vazias de transcendência que muitos custamos a perceber, por trás das ceias e presentes que nos obnubilam e ofuscam, o Mistério translúcido e discreto da Encarnação de Deus no seio de uma mulher, e de seu nascimento do ventre livre e pobre desta mesma mulher.  E, no entanto, mais uma vez  é Natal.  Mais uma vez Deus nos diz com o nascimento desta criança que Sua Aliança conosco é para sempre. Que por mais que façamos ou desfaçamos nunca poderemos atingir mortalmente ou acabar com Seu amor, que resiste a todas as barbaridades que possamos cometer.

Por isso é Natal. Não apenas nas casas bem equipadas com bens perecíveis, alimentos sofisticados e presentes.  Não apenas nas casas não tão aparelhadas, mas nas quais foi e continua sendo possível uma ceia melhor que aqueça o estômago e o coração.

É Natal igualmente nas ruas e pontes onde famílias inteiras se defendem contra a fome e desabrigo pela proximidade dos corpos  que se transmitem um a um  humano calor.  É Natal nas penitenciárias, onde homens e mulheres sofrem a privação da liberdade, mas também e não menos a privação dos mais elementares direitos humanos.  É Natal em todas as regiões do globo, mesmo naquelas onde as armas mortais fazem estragos e destruições aparentemente irreparáveis.

É Natal em Falluja, em Beslan, no Iraque, na faixa de Gaza.  É Natal na Ucrânia e no país basco.  É Natal nas Antilhas.  É Natal na África, em cada um de seus países, onde as crianças foram riscadas do mapa do mundo e estão condenadas pelas grandes potências a morrer de inanição e onde as mulheres, além da pobreza, têm que lutar contra o encurtamento inexorável de suas vidas pelo avanço assustador da AIDS.

É Natal para sempre em todo lugar, mesmo onde os números, as estatísticas e – mais que isso – a realidade, negam cinicamente que seja ou possa ser Natal. Pois Aquele que vem é cantado pela boca da comunidade cristã que interpreta as profecias.  E é cantado e celebrado como Conselheiro Admirável, Deus Forte, Príncipe da Paz. Filho primogênito do Criador do Universo, cujo Reino se estende por toda a Terra, o Menino que vem fará com que as armas sejam transformadas em arados, os instrumentos mortais em meios de paz, o deserto em jardim, a violência em concórdia e comunhão.

Diante da simplicidade inaudita do Mistério de uma criança que nasce de uma mulher, façamos silêncio, tomemos uma atitude de contemplação e adoração.  Mais uma vez é Natal e será Natal para sempre. Porque apesar de tudo, Deus não deixa de acreditar na pobre humanidade que somos e nos oferece a cada ano, com infinito amor, este presente admirável que é Seu Filho.

 Obs: A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão” (Edusc)

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