Leandro Karnal 15 de janeiro de 2017

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O rio da transformação desacelera e chega ao calmo fluxo da planície cotidiana

Janus era o deus com dupla face no mundo antigo. Contemplava direções opostas. Ele batiza o monte Janículo em Roma, onde está enterrada Anita Garibaldi (a heroína de dois mundos no monte do deus de duas faces). Janus também orienta o nome do mês de janeiro que está alvorecendo. É o deus de começo e fim, de passado e futuro, dos momentos de transição como o que estamos agora.

Janeiro é bifronte. Estão frescas as memórias de Ano Novo. Desejamos um ser novo daqui para a frente. Perderemos peso, aprenderemos línguas, guardaremos dinheiro, visitaremos mais os amigos. Então, chega a festa de Reis, 6 de janeiro, limite do ímpeto transformador. O rio da transformação desacelera e chega ao calmo fluxo da planície cotidiana de 2017. Como diz meu querido Hamlet no seu monólogo, a consciência nos torna covardes e o ânimo mais resoluto se afoga na sombra do pensar. Decidimos pela ação e o cotidiano a dilui. O soluto da vontade se entrega ao solvente dos dias intermináveis e do cotidiano desgastante.

O ano será bom ou ruim? Entramos no campo cediço do acaso. A Fortuna romana era a deusa do acaso. Os gregos a chamavam Tique. Nossas vidas serão regidas pelo aleatório. Às vezes parece que sim. O Romeu de Shakespeare brada ao espaço ser um joguete do destino. A grande Bárbara Heliodora prefere traduzir “I am fortune’s fool” por “eu sou palhaço dos fados”.

Sou historiador. Gosto de exemplos concretos. Jean-Baptiste Lully era o italiano que Luís XIV adotou como o grande compositor da Corte francesa de Versalhes. Brilhou musicando bailados para o rei-Sol. Ele estava no auge da fama e do dinheiro. Por poder do monarca, controlava toda a produção musical francesa. Em 8 de janeiro, ele regia um Te Deum, um hino de ação de graças pela saúde do Rei que se recuperava de uma doença. Batendo com um grande bastão no chão para marcar o compasso, Lully se distraiu e alvejou o próprio pé. A pequena ferida infeccionou numa era pré-antibiótico. Ele determinou que o pé não poderia ser amputado. Morreu dois meses depois, em 22 de março de 1687. Foi vítima de si mesmo e do acaso.

Lully não foi a primeira morte estranha, fruto de um acaso cruel. O autor teatral Ésquilo era aclamado como o maior de toda Grécia Clássica. Suas peças, como Prometeu Acorrentado e Os Persas, são encenadas até hoje. Era um talento reconhecido e premiado. Ésquilo ostentava luzidia careca. Escrevia ao ar livre para se inspirar. Uma águia segurava nas garras uma tartaruga e, seguindo velha tradição, jogava o réptil numa pedra para espatifar o casco. Viu a brilhante cabeça do tragediógrafo e arremeteu o petardo, confundindo-o com uma rocha. Ésquilo morreu de uma “tartarugada” na cabeça. O leitor pode supor como essa história me assusta.

Dos gregos à corte de Luís XIV e dali a um avião que conduzia o time de Chapecó: por todo o lado, a tragédia parece combinar o acaso com a incompetência. Jovens que teriam uma vida toda de glórias pela frente encontram seu fim no cruzamento entre a imperícia e a ganância. Como pensar algo original sobre este absurdo?

Janus olha para frente e para trás. O acaso nos ronda e desafia a racionalidade. Como será 2017? Como eu chegarei ao final deste ano? Maquiavel falava do cruzamento entre virtù e fortuna. A primeira seria a soma das suas habilidades pessoais, seus dons e talentos, que podem ser melhorados. Fortuna seria o acaso, aquilo que não se controla. O príncipe de sucesso seria o que combinasse as duas coisas: saberia usar a fortuna e suas habilidades. Por um lado, todos os fatalistas amam a fortuna. Quem usa maktub, a expressão árabe para “estava escrito” (próxima da latina fatum), pensa imediatamente no quanto somos marionetes de forças super/supranaturais. Por outro lado, todos os adeptos do empreendedorismo falam do poder das escolhas feitas. Sou esculpido por mim ou pela sorte? Sou um cruzamento destas forças? Qual o grau de autonomia que terei ao longo de 2017?

É sempre muito alentador imaginar que exista algo superior a mim que me determine. Esse é o conforto dos fados. O que fez com que Edgar Alan Poe, um dos maiores poetas norte-americanos, fosse brilhante e dependente do álcool? O que fez de Ernst Hemingway um escritor intenso e atormentado que iria até o suicídio? Como a Guerra Civil da Espanha interrompeu a carreira de um artista total como Federico García Lorca? Por que um duelo cortou a carreira precoce de um dos grandes inovadores da matemática: Évariste Galois? Era um gênio. Morreu com 21 anos incompletos. São as formas pelas quais as cartas saem do baralho da vida, dirão alguns. Tratam-se de escolhas racionais e autônomas, garantem outros.

Jean-Paul Sartre enfatizava muito que nossa experiência antecede nossa essência, que somos e fazemos as coisas a partir da nossa liberdade, que eu sou fruto da liberdade inelutável e angustiante do existir. Há, aqui, uma crença forte da autonomia do humano e da sua vontade.

Meu orgulho impede que eu me entregue ao fatalismo absoluto. Meu senso de equilíbrio sabe que não sou um deus criando mundos. De fato, creio que somos uma linha curva entre o acaso e a força de vontade, entre a fortuna e a virtù. Seu 2017 será essa curva graciosa e ousada. Você tomará decisões racionais e interessantes. O mundo fará sua oposição usual. O que resultará disso? Difícil saber. A resposta é parte da aventura da nossa biografia. John Lennon escreveu para seu filho que a vida é o que acontece enquanto você está ocupado fazendo outros planos. Chegamos a 2017. Feliz Ano Novo! Um bom domingo a todos vocês! (01 Janeiro 2017 | 02h00)
 Publicado no Estadão.

Obs: Leandro Karnal é historiador, doutor em História social pela USP e professor na UNICAMP.  É convidado de programas como o Jornal da Cultura e Café Filosófico. Escreveu em autoria ou co-autoria mais de dez livros, alguns dos quais estão entre os mais vendidos do Brasil, como “Verdades e Mentiras” ; “Felicidade ou Morte”; “Pecar e Perdoar”; “Detração – breve ensaio sobre o maldizer”; “História dos Estados Unidos “ e “Conversas com um jovem professor”. É membro do conselho editorial de muitas revistas científicas do país. É colunista fixo do jornal Estadão e tem participações semanais nas rádios e canais de TV do grupo Bandeirantes.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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