Foto padre mario

O Concílio Vaticano II significou, sem dúvida, um marco decisivo para a Igreja Católica. Ele não só concluiu um longo período de Contra-Reforma, mas, sobretudo pôs fim ao nefasto divórcio da Igreja com a Sociedade. Se a Constituição Dogmática Lumen Gentium representa a sedimentação da reflexão teológica sobre a própria realidade interna da Igreja, a Constituição Pastoral Gaudium et Spes retrata a relação da Igreja com o mundo. Este tema pode ser encontrado em outros textos deste mesmo Concílio, atestando assim uma mudança profunda de mentalidade entre os Padres Conciliares, que acabou por atingir outros documentos.

Naturalmente a relação da Igreja com a Sociedade é uma questão bastante ampla e complexa. Podemos abordá-la a partir de diferentes ângulos. Devido ao momento histórico vivido por nosso país nestes últimos anos, a perspectiva escolhida para esta nossa reflexão irá se limitar ao campo da sociedade civil e política. Deste modo, embora pressupostas, não serão explicitamente tratadas questões básicas como a dignidade da pessoa humana, a comunidade humana ou a atividade humana no mundo, ou mesmo temas candentes como o da família, da economia ou da paz mundial. Repito: isto não significa que estejam ausentes deste estudo, dada a proximidade e mesmo íntima conexão com nossa abordagem da Gaudium et Spes. Mas, propositadamente, dirigimos nossa reflexão para a sociedade atual onde vivemos com o objetivo confessado de enfatizarmos o imperativo cristão na área política, de certo modo descurado no passado, e que hoje se revela de grande importância. Deste modo, este texto pretende apenas modestamente ajudar ao paciente e já diuturno trabalho dos que lutam por conscientizar os cristãos sobre a dimensão política de sua fé, bem como sobre sua responsabilidade numa sociedade democrática.

Embora tenhamos hoje à nossa disposição rico material sobre a gênese dos textos conciliares, não iremos empreender uma exegese dos que se referem à nossa temática. Procuraremos, isto sim, situar, diacronicamente, a compreensão da Gaudium et Spes no quadro mais amplo das elaborações históricas ocorridas na Igreja, com a finalidade de apontar não só sua novidade, mas ainda sua oportunidade na atual sociedade. Mas também não descuraremos uma leitura sincrônica das afirmações conciliares para nosso país, que deixe patente a pertinência e a atualidade das mesmas, bem como ilumine a postura da CNBB nos anos passados. Por razões variadas a responsabilidade política dos cristãos não se impôs como deveria na consciência dos católicos, mesmo com toda a produção textual proveniente das teologias da libertação. Corrigir esta lacuna será uma tarefa de muitos anos, que já está sendo levada a cabo, com persistência e sacrifício, pelos responsáveis da ação social da Igreja.

Vamos abordar nosso tema em três passos sucessivos. Primeiramente vamos recuperar na memória, de modo breve e conciso, as linhas fundamentais da relação da Igreja com a sociedade no período pré-conciliar. Com este pano de fundo examinaremos como se elaborou esta mesma relação na Gaudium et Spes, para finalmente tratar desta relação em nossos dias, de modo especial em nosso país.

I – IGREJA E SOCIEDADE NO PERÍODO PRÉ-CONCILIAR

Dificilmente poderíamos entender a perplexidade de membros da hierarquia católica diante das mudanças socioculturais atuais e menos ainda reconhecer a enorme conquista do Concílio Vaticano II, se não tivermos bom conhecimento do que sucedeu no passado. Pois ainda hoje imagens e representações da cristandade, bem como sonhos e expectativas de nossos antepassados continuam presentes em nossas mentes. É importante que as conheçamos para entendermos o momento atual. A história nos ensina também que nos situamos no interior de uma problemática tipicamente ocidental, cunhada na expressão Igreja e Estado. Não podemos supor esta realidade, tal como a concebemos, existir também em outras partes do mundo. Aprendemos ainda da história que esta questão não apresenta uma solução universal e supratemporal, pois esta última depende sempre da respectiva compreensão e configuração concreta seja da Igreja e seja da sociedade. O que vale também para nossos dias e delimita o âmbito desta reflexão. Ainda uma última observação preliminar: somente à luz do que se deu no passado, nós poderemos entender uma certa apatia por parte dos católicos diante de suas responsabilidades políticas na sociedade. Entender suas origens já é um passo dado para corrigi-la.

No passado a relação da Igreja-Sociedade se limitou em grande parte ao relacionamento da mesma com o Estado[1]. Este era considerado a representação suprema da vida social e política, acima de qualquer outra autoridade e com poderes de direito para garantir o bem estar dos cidadãos. Ele constituía realmente uma sociedade perfeita dotada de uma finalidade própria, como ensinava Aristóteles e concordavam seus seguidores na Idade Média. Além disso, comparavam a sociedade a um organismo, comandado pela cabeça, a saber, o rei, ou simplesmente, o governo. Daí serem os cidadãos e suas possíveis associações representados sem mais pelo Estado e por ele absorvidos. Este fato explica que a relação da Igreja com a sociedade irá se limitar, em grandes linhas, a seu relacionamento com o Estado. Este, por sua vez, considerava a religião como um componente natural e necessário da vida humana, parte da vida social e política que devia ser reconhecida e cuidada. Num tempo de cristandade esta religião considerada a única verdadeira era o cristianismo.

Por seu lado, a Igreja também irá se conceber, analogamente ao Estado, como uma entidade de direito autônoma e auto-suficiente, independente de qualquer outra instituição, dotada das propriedades necessárias para alcançar sua finalidade própria, numa palavra, também como uma sociedade perfeita. Esta compreensão não tem suas raízes no Novo Testamento, mas foi sendo gerada a partir da questão das investiduras para garantir a autonomia e independência da Igreja ameaçada então pelo poder político. Deste último tomou mesmo a Igreja as características e as propriedades. Assim ela se defendia do crescente poder dos príncipes e dos reis, que queriam vê-la como uma entidade dependente do Estado soberano. Conseqüentemente Igreja e Estado se confrontavam como duas sociedades perfeitas de mesmo nível.

Elas se distinguiam não pelas respectivas estruturas, nem pelos meios que utilizavam, mas pelas diferentes finalidades e tarefas correspondentes. A Igreja buscava a salvação das almas, enquanto o Estado procurava o bem estar dos cidadãos. Tais finalidades são finalidades últimas em seu respectivo âmbito. Num mundo caracterizado pela unidade de política e religião gozava também a Igreja de poder externo em vista de realizar sua finalidade espiritual. Pois, dado o fato de que não se podia separar o setor espiritual do setor civil, estando ambos freqüentemente às voltas com a mesma realidade, acabou a Igreja por dispor de um poder indireto nas coisas temporais.

Esta relação recebe sua expressão doutrinal com Roberto Bellarmino, que preserva a autonomia do poder político diante da Igreja, mas defende um poder indireto desta última com relação aos cidadãos desde que esteja em questão sua salvação eterna. Tal poder a potencializa para intervir diretamente no âmbito político (depor autoridades, emitir leis, etc.). Daí estarem, de fato, Igreja e Estado numa situação de forças concorrentes. Podem discordar, ao abordar sob prismas e finalidades diferentes, a mesma questão. Quem terá a última palavra? Fator decisivo aqui é o fato histórico da cristandade, da união do político com o religioso. Pois, confrontadas as finalidades de ambos, vence a Igreja por representar um objetivo superior, a finalidade última e mais elevada da humanidade, que está acima do bem estar dos cidadãos. Com isso ganha ela a precedência sobre o Estado. Caberia, portanto, ao Papa decidir quando deveria usar de seu poder indireto no campo civil, determinando mesmo até onde ele poderia chegar. Já foi observado que a elaboração de Bellarmino poderia ser usada em sentido contrário pelo Estado, demonstrando assim sua fragilidade. Pois também em vista de sua finalidade, o bem estar dos cidadãos, poderia o Estado intervir indiretamente em questões religiosas.

Entretanto no decorrer dos anos a concepção bellarminiana da relação Igreja-Estado irá se enfraquecendo. Com a Reforma e a conseqüente divisão no interior do cristianismo, os Estados ganham maior consciência de sua soberania, procurando enquadrar a Igreja sob sua tutela. Lembremos apenas o jus reformandi, o princípio cujus regio ejus religio, os embates em torno da Igreja galicana, para citar alguns episódios desta época. A revolução francesa significou o fim da fundamentação religiosa do Estado e o não reconhecimento da Igreja como uma sociedade perfeita. Com isso ela se viu de certo modo submetida ao poder civil, por vezes até perseguida, devendo lutar por sua liberdade.

Esta situação levou o papa Leão XIII a reformular a relação Igreja-Estado, reconhecendo a plena autonomia do Estado, sendo, porém este Estado não o que realmente existia, mas o Estado enquanto visto numa ótica católica, sujeito à lei natural e à lei de Deus tal como as concebia a Igreja. Deste modo, a ação indireta da Igreja sobre o Estado se dava como instância de moralidade em geral, e não como instância política. Mas, no fundo, o Estado devia se submeter à competência de juízo própria da Igreja, conservando-se assim a concepção de Bellarmino. Tratava-se de uma potestas directiva, que mantinha a prerrogativa da Igreja nas coisas temporais, adaptada à nova situação de estabilidade dos Estados soberanos. Os fiéis são estimulados a seguir dentro da sociedade as determinações da Igreja, sem contar, entretanto, com o respaldo oficial da mesma.

Deste percurso através da história emerge um fato que nos atinge fortemente ainda hoje. O âmbito político e o âmbito religioso da sociedade se expressaram, dialogaram, entraram em conflito, encontraram soluções apenas através das autoridades e instituições da Igreja e do Estado. O cidadão cristão não tinha, como cidadão, nenhum peso na área política, e, como cristão, nenhuma voz na área religiosa, sendo representados pelas instituições citadas. Estas, por um lado, lhe poupavam uma participação ativa, consciente e crítica por ocasião dos embates cívico-religiosos, mas o condenavam, por outro, a certa passividade que perdura até nossos dias.

II – IGREJA E SOCIEDADE NA GAUDIUM ET SPES

1.Importância da eclesiologia do Concílio Vaticano II

A Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo de Hoje se beneficiou grandemente da Constituição Dogmática sobre a Igreja, que lhe foi anterior e lhe permitiu um novo enfoque da relação Igreja-Mundo[2]. Não podemos conceber a Gaudium et Spes sem as conquistas da Lumen Gentium. Ambas se completam, pois uma se voltou para dentro da comunidade eclesial, enquanto a outra se dirigiu para a sociedade circundante. Sem pretendermos esgotar o tema podemos indicar algumas linhas teológicas da Lumen Gentium que se tornaram fundamentais para a elaboração da Gaudium et Spes.

Primeiramente a opção de tratar de todo o Povo de Deus antes de falar da hierarquia, acentuando o que é comum a todos na Igreja. Deste modo, valorizou a presença e a atuação dos cristãos leigos na Igreja, seu sacerdócio comum, seu sentido da fé e seus carismas próprios. Ela significou o fim de um laicato passivo diante de uma hierarquia ativa, já que todos são Igreja, todos participam de sua atividade salvífica pelo fato de serem batizados (LG 33). Todos gozam de igual dignidade, todos constituem o Povo de Deus, todos são assistidos pelo Espírito Santo, todos tem um carisma e um papel no interior da comunidade, todos igualmente desempenham um papel profético na sociedade por serem cristãos (LG 35).

Em seguida, a mudança básica na reflexão eclesiológica: de uma Igreja voltada para si mesma, preocupada em definir juridicamente direitos e deveres, em reforçar suas formulações e instituições, em se apresentar ao mundo com a força de uma sociedade perfeita, para uma Igreja voltada para o mundo, para o Reino de Deus, preocupada em ser o sacramento da salvação de Jesus Cristo para a humanidade, através não do poder, mas do serviço à sociedade.

Também a consideração da Igreja numa perspectiva trinitária abre espaço para que se leve devidamente a sério a atuação do Espírito Santo em cada fiel. Respeita-se, assim, a liberdade, a singularidade e a ação do indivíduo no interior da comunidade e, conseqüentemente, no mundo. “Os sagrados Pastores reconheçam e promovam a dignidade e a responsabilidade dos leigos na Igreja. De boa vontade utilizem-se do seu prudente conselho. Com confiança entreguem-lhes ofícios no serviço da Igreja. E deixem-lhes liberdade e raio de ação. Encorajem-nos até para empreender outras obras por iniciativa própria” (LG 37).

2. Igreja e Mundo na Gaudium et Spes

A intenção fundamental do Concílio Vaticano II foi de atualizar a ação salvífica da Igreja no mundo moderno. Significava uma ruptura corajosa e difícil com o passado, ao retomar o diálogo com a cultura e a sociedade. Pois, foi necessária uma nova compreensão da própria Igreja, incidindo na liturgia, no ecumenismo, no diálogo inter-religioso, na ação missionária, nas figuras do bispo, do presbítero, dos religiosos, dos leigos, no labor educativo e no mundo das comunicações sociais. E ainda mais: um novo relacionamento com tudo aquilo que constitui a sociedade humana, como o mundo da família, da economia, da cultura, da política, da comunidade internacional. Daí a importância da Constituição Gaudium et Spes.

Esta foi a finalidade desta Constituição, já presente em suas primeiras linhas: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo… Não se encontra nada de verdadeiramente humano que não lhe ressoe no coração… Portanto, a comunidade cristã se sente verdadeiramente solidária com o gênero humano e com sua história” (GS 1). Não mais dar as costas ao mundo, ou tratá-lo com ares de superioridade, mas acolhê-lo em toda a sua realidade para poder transformá-lo (GS 2).

Este fato vai obrigar o Concílio a adotar uma nova metodologia. Não mais partir de declarações doutrinais gerais, tal como aparecia nos primeiros esquemas da Gaudium et Spes, mas refletir à luz da fé cristã a própria realidade humana[3]. Para isto, faz-se mister, primeiramente, conhecê-la, o que vem realizado na forma de descrições que nos põem diante dos olhos a sociedade daquele tempo. Em seguida esta realidade é confrontada com a visão cristã e assim devidamente avaliada. Com este procedimento pode-se chegar a orientações pastorais adequadas e pertinentes.

Já que esta Constituição Pastoral pretende se dirigir não apenas aos membros da Igreja, mas também a todos os seres humanos (GS 2), encontrou ela na pessoa humana, “considerada em sua unidade e totalidade”, o denominador comum numa sociedade pluralista, “que será o eixo de toda a explanação” (GS 3).  Só enquanto aceita em seu valor humano poderá a Igreja ser ouvida e acolhida em sua proclamação evangélica. Deste modo ela se abre ao diálogo com todos os que buscam construir uma humanidade mais fraterna e mais justa, mesmo que sejam de outras crenças ou mesmo ateus. Assim como a Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a revelação divina constituiu o fim do período da Contra-Reforma, assim a Gaudium et Spes significa a conclusão da era constantiniana.

Uma parte introdutória descreve a condição da pessoa humana no mundo moderno, indicando as mudanças profundas experimentadas pela humanidade, sejam as sociais, as psicológicas, as morais e as religiosas, as quais geram tensões e desequilíbrios. Em seguida expõe as aspirações mais gerais e as interrogações mais profundas do gênero humano (GS 4-10). Esta introdução é seguida por duas partes que constituem propriamente a Constituição Pastoral. Numa primeira é apresentada a antropologia subjacente a todo o texto, de modo especial ao que vem afirmado numa segunda parte dedicada a alguns problemas urgentes. Esta antropologia cristã vem exposta em três capítulos. O primeiro fala da dignidade da pessoa humana, acentuando sua vocação última, sua fragilidade devido ao pecado, sua natureza espiritual e corpórea, sua inteligência, sua consciência moral e, sobretudo, sua liberdade, “sinal eminente da imagem de Deus no homem” (GS 17).

O segundo capítulo trata da comunidade humana, abordando a índole comunitária da pessoa humana no desígnio divino (GS 24), afirmando a mútua dependência do individuo e da sociedade (GS 25), cada vez maior nos últimos tempos e que deveria servir ao bem comum (GS 26). Neste sentido enfatiza o respeito pela pessoa (GS 27), a justiça social (GS 29), a superação de uma ética individualista (GS 30) em favor de uma ética de responsabilidade com a participação de todos (GS 31).

Mais importantes porque mais próximos ao nosso tema de estudo são o terceiro e o quarto capítulo desta primeira parte. Vejamos o terceiro cujo título é: sentido da atividade humana no mundo. Neste capítulo e no seguinte, conquistas teológicas anteriores ao Concílio fundamentaram as afirmações que caracterizam o pensamento dos padres conciliares. Poderíamos citar neste sentido uma noção adequada de Reino de Deus que corrige a concepção espiritualista da salvação cristã, uma teologia cristocêntrica da criação que confere densidade teológica à realidade criada, uma concepção unitária de natureza e graça que dá sentido cristão a qualquer ação humana não sujeita ao egoísmo.

Reconhecendo o enorme esforço de homens e mulheres para dominar a natureza, usufruir melhores condições de vida, conviver melhor com seu semelhante, observa o Concílio que tudo isto corresponde ao desígnio de Deus, desde que não prejudiquem o próximo, e mesmo que sejam atividades cotidianas da vida familiar e profissional. E conclui: “Donde aparece que a mensagem cristã não desvia os homens da construção do mundo nem os leva a negligenciar o bem de seus semelhantes, mas antes os obriga mais estritamente por dever a realizar tais coisas” (GS 34).

Também o Concílio reconhece a justa autonomia das realidades terrestres, a saber, “as coisas criadas e as próprias sociedades gozam de leis e valores próprios” (GS 36), que devem ser respeitados e que não podem se opor à fé por terem sua origem no mesmo Deus. Assim os que pesquisam os segredos da realidade são como que conduzidos pela mão de Deus, já que a verdade é uma só e não pode assim haver oposição entre fé e ciência. Mais ainda. O Espírito Santo “anima, purifica e fortalece também aquelas aspirações generosas com as quais a família humana se esforça por tornar mais humana a sua própria existência” (GS 38).

As conquistas humanas ao longo da história não somente constituem ações salvíficas para seus autores, mas em si próprias contribuem para a realização definitiva do Reino de Deus. Passa a figura deste mundo, mas não passa sua substância ou suas condições materiais, como escreveu Santo Irineu, citado somente em parte no texto conciliar devido à pressão de uma minoria. Do mesmo modo opina Santo Tomás de Aquino[4]. E o próprio Concílio afirma neste mesmo número: “Depois de propagarmos na terra, no Espírito do Senhor e por sua ordem, os valores da dignidade humana, da comunidade fraterna e da liberdade, todos estes frutos da natureza e do nosso trabalho, nós os encontraremos novamente limpos, iluminados e transfigurados, quando Cristo entregar ao Pai o Reino eterno e universal” (GS 39). A salvação cristã plena e definitiva assume, assim, a realidade criada e a história. Ela será a revelação perfeita da profundidade espiritual nela presente.

O capítulo IV trata da tarefa que incumbe à Igreja no mundo atual. Há aqui uma mudança clara de paradigma. Não mais uma relação descrita em termos de poder e de subordinação, como acontecera no passado, mas de diálogo, de mútua colaboração e responsabilidade. Mundo é entendido não tanto como algo mau que deva ser evitado, mas como o conjunto da vida e da atividade humana, a totalidade da história e da cultura. Com ele não entra a Igreja em competição, pois “ela existe neste mundo e com ele vive e age” (GS 40). Fundamentada no que foi afirmado nos três primeiros capítulos sobre a dignidade, a comunidade e atividade humana (GS 12-39), afirma esta Constituição Pastoral que a Igreja não só comunica à humanidade a vida divina, mas também eleva a dignidade da pessoa humana, fortalece a coesão da sociedade humana e oferece o sentido profundo da atividade cotidiana de homens e mulheres (GS 40).

A Igreja não está, por assim dizer, ao lado da sociedade, por ter uma finalidade própria. Naturalmente, sua missão específica é de cunho religioso, e não propriamente político, econômico ou social. Mas sua ação evangélica repercute na organização e no fortalecimento da comunidade humana, pois decorre da fé e da caridade vividas pelos cristãos, e não do uso de meios de coerção externa (GS 42). Por não se prender a nenhum sistema político, econômico ou social, consegue maior alcance universal em sua ação, podendo mais unir comunidades e nações (GS 42). Também deve ser observado que neste capítulo, bem como nos demais documentos, o Concílio omite o termo “Estado”. Fala de “governantes”, de “autoridade pública”, de “autoridade civil”, porém mais freqüentemente de “sociedade humana”, de “sociedade civil”, de “comunidade política”. Do mesmo modo como a Igreja é designada como “comunidade eclesial”[5].

Este fato confirma a mudança de enfoque nas relações Igreja-Sociedade, anteriormente mencionado e esclarece a ênfase da ação eclesial através dos leigos cristãos. Estes são estimulados a verem suas atividades profissionais e sociais em estreita ligação com sua vida religiosa, não permitindo o funesto divórcio entre fé e vida cotidiana que reduzisse a vocação cristã a celebrações e a éticas parciais. São também os leigos convidados a assumirem suas próprias responsabilidades, à luz da fé e da doutrina do magistério, sabendo que a fé cristã, por transcender sistemas e ideologias, veta qualquer pretensão de exclusividade nas soluções para as questões sociais (GS 43).

A Igreja, contudo, não apenas colabora com a sociedade, mas também é ajudada pela sociedade. De fato ela “está firmemente persuadida de que pode receber preciosa e diversificada ajuda do mundo, não só dos homens em particular, mas também da sociedade” (GS 40). Afirmação nova que implica pressupostos e conseqüências. Neste final do quarto capítulo são enumerados os auxílios prestados à Igreja pela sociedade. A começar pelo horizonte cultural que capacita o ser humano a se conhecer melhor. Em seguida pela linguagem de cada época e região, que tanto possibilitam a comunicação da mensagem evangélica, quanto questionam compreensões tradicionais parciais e inadequadas. Além disso, em sua própria organização institucional aprende a Igreja com as novas formas de convivência humana, configurando sua identidade teológica em formas mais aptas à sua missão salvífica (GS 44).

3. Missão da Igreja na sociedade política

A segunda parte da Gaudium et Spes trata de vários problemas mais urgentes como a família, a cultura, a economia, a paz, a comunidade internacional e a comunidade política. O que se segue limita-se a este último tema[6]. Primeiramente reconhece o Concílio as profundas transformações sociais que acabam por incidir “na vida da comunidade política” (GS 73). De fato, não mais se aborda a política a partir da autoridade, justificando-a e relacionando-a com os cidadãos e procurando conciliar autoridade e liberdade. O texto parte antes da comunidade política que tem por objetivo o bem comum, sendo a autoridade um fator da mesma, para atingir sua finalidade (GS 74). Esta comunidade política resulta da incapacidade da sociedade civil de “instaurar uma vida plenamente humana”. Nela as pessoas não se ocupam apenas com sua vida familiar e profissional, mas também, como cidadãos, dotados de direitos e deveres, ultrapassando o âmbito de seu grupo em vista de toda a comunidade civil. O bem comum é a única razão da existência da sociedade política e de sua estrutura jurídica. E como a autoridade lhe é intrinsecamente necessária, ela deve ser configurada e escolhida pela própria sociedade civil. Enquanto fundamentada na “natureza humana” ela corresponde “à ordem predeterminada por Deus” (GS 74).

Pressuposto fundamental e primeiro de toda a vida política é o respeito à liberdade individual. Cientes de se encontrarem numa sociedade pluralista marcada por diversas tradições, idéias e convicções, afirmam os bispos que só no respeito mútuo pode ser atingida a paz social. Todos devem poder se associar e emitir suas opiniões sejam eles grupos minoritários ou religiosos. Pois só assim poderão “participar ativamente na vida e no governo do país” (GS 73). Esta vontade de maior participação provém da maior consciência da dignidade humana (GS 73) e implica que o governo respeite os grupos intermediários na gestão da coisa pública, tais como associações familiares, sociais, culturais, sem querer tudo abarcar (GS 75). Embora sem expressá-lo explicitamente o Concílio implicitamente defende o regime democrático ao recomendar a participação de todos, ao condenar regimes totalitários ou ditatoriais e ao reconhecer a diversidade dos partidos políticos (GS 75).

A relação entre Igreja e Estado aparece sob nova perspectiva devido ao advento da sociedade pluralista. Trata-se mais propriamente do relacionamento da sociedade política com a Igreja, mais complexo que o anterior. Primeiramente vem afirmado que a Igreja, por ter uma finalidade religiosa, de modo algum se confunde com a comunidade política e nem está ligada a qualquer sistema político (GS 76). O que não significa que ela seja indiferente aos sistemas políticos ou que sua doutrina social deva se harmonizar com qualquer sistema político. Pois ela defende sempre o bem comum e a liberdade de todos participarem deste objetivo. No fundo ela quer salvaguardar a pessoa humana em sua integridade, ou como afirma o texto, “o caráter transcendente da pessoa humana” ou “sua vocação eterna”, o que reflui também para a ordem temporal. De fato, proclamando a verdade do Evangelho e iluminando todos os setores da atividade humana “a Igreja respeita e promove também a liberdade política e a responsabilidade dos cidadãos” (GS 76). Assim sua ação religiosa repercute necessariamente na sociedade política.

Embora autônomas e independentes em seu campo Igreja e sociedade política devem colaborar, pois ambas “estão a serviço da vocação pessoal e social dos mesmos seres humanos” (GS 76). O texto não indica qualquer forma jurídica de colaboração, mas acena que ela deverá considerar “as circunstâncias dos tempos e dos lugares” (GS 76), implicando assim uma pluralidade de formas. A colaboração não exige vantagens e privilégios. O único bem que a Igreja pede da comunidade política é a liberdade. Pois ela deve utilizar em sua atividade salvífica “os caminhos e auxílios próprios ao Evangelho”, a saber, os meios que se apóiam no “poder de Deus” (GS 76). Entretanto, a condição humana pede que a Igreja empregue, na medida em que sua missão o exija, também bens temporais. Mas, de modo algum, ela deve colocar “a sua esperança nos privilégios oferecidos pela autoridade civil”, devendo mesmo renunciar aos já legitimamente adquiridos se estes enfraquecem seu testemunho ou se as condições tenham mudado. Sua missão não é diretamente de cunho político, embora possa também atingir a sociedade política, sempre que estejam em jogo “os direitos fundamentais da pessoa e a salvação das almas”. Compete-lhe em tal situação emitir um juízo, não político, mas moral sobre as realidades políticas (GS 76).

Na linha da eclesiologia do Povo de Deus, elaborada na Constituição Dogmática sobre a Igreja (Lumen Gentium), todos os cristãos são chamados a uma participação ativa no campo político. Tema de grande atualidade, dado o desinteresse dos cristãos pela política, e até certo desprezo pelos políticos profissionais. Em primeiro lugar porque os cristãos são pessoas humanas, livres e responsáveis, devendo assim poder determinar a organização social ou o contexto concreto onde se desenrolam suas vidas, e que tão fortemente as condiciona. Conseqüentemente deverão poder participar tanto dos fundamentos jurídicos da comunidade política (Constituição do Estado) como das atividades administrativas do setor público e da eleição dos governantes. O voto é, assim não só um direito, mas um dever, em vista da promoção do bem comum (GS 75).

Na mesma linha o Concílio insta a formação civil e política de todos, especialmente da juventude, para que promovam os valores que redundem no bem de toda a sociedade, e não permaneçam prisioneiros de interesses próprios, seja de pessoas, grupos ou categorias (GS 75). A atividade política dos cristãos, mesmo se levada a cabo inspirada pela fé, não constitui propriamente uma ação da Igreja, e sim dos cristãos enquanto cidadãos participantes da vida política, que podem legitimamente divergir da de outros cristãos, dada a complexidade da realidade política. Outra coisa é esta atividade enquanto exercida juntamente com as autoridades eclesiásticas em nome da Igreja, que então representaria oficialmente a mesma (GS 76). Contudo, esta distinção nem sempre funciona na prática, pois em geral a sociedade vê a atividade dos católicos como ação da Igreja.

O Concilio demonstra estima e respeito pela atividade política. Considera-a um autêntico serviço, termo denso no vocabulário cristão. Vejamos como se expressa: “A Igreja considera digno de louvor e consideração o trabalho daqueles que se dedicam ao bem da coisa pública a serviço dos homens e assumem os trabalhos deste cargo” (GS 75). Mais ainda. O Concílio convida os que têm as qualidades requeridas desta “difícil e ao mesmo tempo nobilíssima arte política”, que eles a exerçam, que esqueçam seus interesses próprios e lutem contra a injustiça e a opressão, o absolutismo e a intolerância. Insiste ainda que esta atividade deve ser exercida com sinceridade e retidão, com amor e coragem (GS 75). Uma nota ao pé da página relembra um discurso de Pio XI (18|12|1937) em que ele diz que “nada, exceto a religião, é superior ao domínio político no que concerne aos interesses de toda a sociedade e que sob este aspecto é o domínio da forma mais ampla da caridade, a caridade política[7].

III. IGREJA E SOCIEDADE NO BRASIL

1. O passado ilumina o presente

Recordar, ainda que de modo sumário e global, a história da Igreja em nosso país é condição imprescindível para quem quiser entendê-la em nossos dias, com suas luzes e suas sombras, suas conquistas e suas deficiências. Iremos dividi-la em cinco etapas, tomando como critério mudanças qualitativas importantes acontecidas neste período do século XVI até hoje. Naturalmente a ótica escolhida para esta nossa leitura, a saber, a relação da Igreja com a sociedade, será determinante nesta memória do passado, deixando conseqüentemente em silêncio outros aspectos, não menos importantes, mas sem pertinência para a nossa questão. Fundamental para nós será entender a situação atual com realismo, ao ter consciência dos condicionamentos históricos da Igreja em nosso país.

No período colonial que se estende até a proclamação da república, Igreja e Coroa estão unidas num empreendimento comum: conquistar novas terras para Portugal e trazer seus habitantes para a fé católica. Deste modo ambas instituições se reforçam e se legitimam mutuamente. Para o imaginário do tempo, a conquista dos reis portugueses se revestia de um caráter missionário e divino. Deste modo consegue a Coroa Portuguesa, para melhor realizar sua missão, importantes privilégios da Santa Sé, como nomeação de bispos, recolhimento e administração do dízimo, sustento do clero, construção de Igrejas, aprovação de documentos eclesiásticos, mesmo dos que vinham de Roma, etc. Era o tempo do padroado. Hoje reconhecemos que houve forte dependência da Igreja com relação à Coroa.

As vantagens para sua tarefa missionária, já que todos deviam ser católicos e batizados, caso não o fossem ainda, trouxeram também conseqüências negativas duradouras. Primeiramente uma fragilidade institucional já que a Igreja se apoiava na monarquia. Aliada ao Poder, ela se sentia suficientemente forte e, assim, não desenvolveu como devia sua estrutura interna. Em seguida, desta situação resultou a ausência de uma pastoral de conquista entre os responsáveis e de compromisso entre os fiéis, já que ser católico e ser brasileiro se equivalia. Além disso, a influência da Igreja na sociedade colonial se fazia sempre através da Coroa, impossibilitando uma ação própria que constituísse, por exemplo, um laicato consciente. As prioridades do Estado tinham, de fato, primazia diante das prioridades da Igreja, os recursos arrecadados com o dízimo não eram devidamente aplicados na Igreja, sem que ela, frágil, rural, e dispersa, tivesse a possibilidade de protestar.

Neste tempo o catolicismo dominante no Brasil era de cunho devocional, trazido pelo catolicismo medieval português, expresso na devoção aos santos, nas promessas, na comunicação com os mortos, nas procissões, despreocupado de doutrinas e sacramentos. Um catolicismo familiar que floresceu tranqüilamente sem qualquer mediação institucional ou clerical. Este fato revela quão limitada era a influência real da Igreja na sociedade, embora esta fosse considerada católica. Também explica a passividade do católico diante do poder instituído, fazendo-o atuar como fator de estabilidade e de continuidade, seja pela união de Igreja e Coroa Imperial, seja por esta religiosidade popular.

Com o advento da República perde a Igreja suas regalias e ganha finalmente sua liberdade. A separação de Igreja e Estado foi dura por não ter ela desenvolvido suficientemente sua própria estrutura. A chegada de clero e religiosos vindos da Europa amenizou em parte esta lacuna. Mas o reatamento de relações diretas com o Vaticano favorecerá a implantação de uma pastoral européia, mais voltada para a classe média urbana, enquanto a maioria da população brasileira era rural e bem subdesenvolvida. Enfim, uma pastoral que não levava em conta o contexto brasileiro.

Apesar de repetidas tentativas a Igreja não conseguiu da República as ajudas que tivera na época imperial. A figura do Cardeal Sebastião Leme, preocupado com a perda de influência e de prestígio da Igreja num país que se dizia católico, será marcante na primeira metade do século XX. Ele se lança então numa luta pela formação religiosa da população, pelo envolvimento das elites na busca de maior importância pública da Igreja. O surgimento do Estado Novo com Getúlio Vargas propiciou ao Cardeal a obtenção dos privilégios perdidos em troca do apoio ao governo na manutenção da ordem e da estabilidade. Alguns falam aqui de uma “neocristandade”.

As fortes mudanças ocorridas no país pela crescente modernização a partir de 1955 acabaram por repercutir no interior da Igreja. Esta se coloca a favor das transformações estruturais reclamadas, dirigindo sua atenção para os camponeses das zonas rurais, embora com fortes reações provindas de setores eclesiais. A recém fundada CNBB terá um importante papel neste momento pelas mudanças em favor das classes populares. Assim entra na luta por uma maior participação das classes operárias urbanas e dos lavradores das áreas rurais por mudanças institucionais. Embora com uma estrutura jurídica frágil, conseguiu se fazer valer pelo apoio do próprio governo da época e pela aprovação de Roma. Depois do golpe de 1964 nota-se, contudo, uma mudança de orientação na CNBB, devido à situação política do momento, voltando ela à posição de anos atrás.

Porém a paz selada com o governo militar pela eliminação do perigo comunista não teve longa duração. Abusos de poder, violências, torturas, mesmo de leigos católicos e até de sacerdotes e bispos, em nome da doutrina da segurança nacional, levaram a Igreja a tornar-se uma crítica ferrenha do regime vigente. Com as outras entidades sociais supressas ou sob severo controle acaba a Igreja por se tornar o porta-voz da maioria ignorada ou oprimida pelo governo. Durante um certo tempo, aliás, ela procurou certa convivência pacífica com o regime concentrando-se mais em atividades pastorais com menor risco de implicações sócio-políticas. Por volta de 1978 passa ela, entretanto, a trabalhar preferencialmente com as classes mais pobres. Um ano antes havia aprovado com esmagadora maioria na Assembléia anual da CNBB um corajoso documento intitulado Exigências Cristãs de uma Ordem Política. Cada vez mais ela percebe que o modelo econômico aumentava a pobreza e endividava o país. Mas cai na conta que sua influência social é pequena, já que os católicos praticantes são uma minoria, não existe um laicato engajado, suas obras assistenciais diminuem. Alguns dizem mesmo que esta mudança na linha pastoral se deveu a uma estratégia de querer manter o poder a todo custo. Mas, sem dúvida, estava também em jogo sua credibilidade na defesa dos valores evangélicos e da pessoa humana.

O pontificado de João Paulo II terá importantes conseqüências para a Igreja do Brasil. Sua abertura a outras religiões ou mesmo sua sensibilidade com a diversidade cultural no mundo representam passos decisivos e corajosos para a Igreja Católica. Mas sua preocupação em acalmar o movimento pós-conciliar, sua insistência na centralização romana, seu controle do pensamento teológico, seus critérios para a nomeação de novos bispos acabam por repercutir claramente em nossa Igreja. Embora continue próxima aos pobres em grande parte das dioceses brasileiras, pôde-se observar uma mudança na ênfase de seus pronunciamentos, uma diminuição da importância dada ao apostolado social, um maior silêncio sobre as Comunidades Eclesiais de Base, uma maior preocupação com movimentos de classe média. Com relação ao governo a CNBB manteve sempre sua independência, sabendo criticar o modelo econômico adotado nos últimos anos, embora às voltas com problemas internos urgentes como o avanço do pentecostalismo em nosso país.

Podemos mencionar, à guisa de conclusão, algumas conseqüências deste nosso passado que ainda repercutem fortemente em nossos dias. Sem dúvida alguma a sociedade civil não teve grande participação nos destinos no Brasil. Faltou-lhe consciência de cidadania, formação autônoma de grupos e movimentos civis e populares, movimentos e estruturas de mobilização e participação política e, ainda hoje, partidos políticos com objetivos bem definidos. Da parte da Igreja pudemos verificar que a situação não diferia muito daquela da sociedade civil. O modelo de cristandade não favorecia uma atitude consciente e crítica dos católicos, pois assim estariam questionando a união da Coroa com a Igreja, sem falar da insuficiente formação religiosa dos leigos e da limitada influência da instituição eclesial no catolicismo popular da grande maioria. A experiência da Ação Católica na década de 1960 significou uma ruptura com esta situação[8], mas provocou também uma certa desaprovação por parte da própria hierarquia, apontando para uma questão que continua viva ainda em nossos dias.

2. Igreja e sociedade atual

Vejamos inicialmente algumas características básicas da sociedade atual e como a Igreja pode com ela se relacionar, antes de abordarmos mais concretamente a sociedade brasileira[9]. A vida social do passado, na qual o Estado tudo abrangia e determinava, acabou por provocar uma emancipação gradativa dos indivíduos. Deste modo, caem as estruturas intermediárias (corporações) que dominavam e limitavam a população civil. Seu desfecho foi uma sociedade, concebida e estruturada por indivíduos igualmente sujeitos ao Estado, mas lutando por mais liberdade. Surge a sociedade como realidade livre, embora no espaço garantido juridicamente pelo Estado. Este, contudo, não pode lhe ditar conteúdos, e sim garantir seu espaço de liberdade e regular os direitos fundamentais legítimos em suas modalidades e limites. Não há propriamente uma separação estrita entre Estado e Sociedade, pois esta última influencia constantemente o Estado (economia, cultura, mídia, opinião pública), que necessita de certo consenso básico da sociedade para agir.

A atual sociedade também se caracteriza por ser uma sociedade voltada para necessidades e conquistas. A liberação do indivíduo de uma sociedade de corporações lhe permite partir para conquistas econômicas, fazendo com que a sociedade se estruture em torno deste eixo. Em si, todos têm iguais direitos de conquistas e de posse das mesmas, estando limitados apenas pelos direitos dos outros. Assim a sociedade se estrutura em torno da economia, que produz desigualdade social, devendo o Estado diminuir seu impacto por uma política social ativa. Além disso, nesta sociedade há uma tendência de considerar os eventos sociais pela ótica econômica (investimento e lucro).

Se a olharmos na perspectiva ético-cultural devemos caracterizar a sociedade atual como pluralista. Nela não há lugar para uma orientação básica de cunho normativo. É uma sociedade aberta respeitadora da liberdade de religião, de cosmovisão, de opinião, de arte, de orientação política. Tais fatores podem influenciá-la, sem possuírem qualquer caráter de obrigatoriedade, pois sua base se encontra mesmo é na liberdade. Uma tradição cultural ou religiosa pode, mesmo, ser componente de sua fundamentação de facto, mas não de jure. Não negamos, contudo, que no ocidente a sociedade foi longo tempo sustentada por uma concepção unitária provinda da fé cristã e da cultura nacional. De qualquer modo, a sociedade moderna pode sofrer transformações, sem que o Estado possa impor uma orientação normativa.

Esta sociedade, que deve respeitar a liberdade de cada um e que se configura por isso mesmo como uma sociedade pluralista, se enfrenta hoje com o problema de alcançar uma relativa homogeneidade e certa regulamentação entre as liberdades plurais tornando possível a convivência de seus membros. No passado esta tarefa cabia à religião, mais propriamente ao cristianismo no ocidente. Como conseguir ela um consenso sobre os valores que a norteiam? Em que afinal se fundamentam seus princípios?  Mesmo os valores que parecem comuns como liberdade, justiça, igualdade, solidariedade, responsabilidade, quando aplicados a situações concretas geram posições diferentes e até opostas, por serem entendidos no interior de referenciais diversos.

Recorrer apenas ao princípio da maioria é bastante arriscado, devido à poderosa força do fator econômico na vida social, a nível nacional e internacional, limitando a esfera política e controlando a mídia que tudo invade. Como avaliar a opção da maioria com relação ao bem comum sem dispor de marcos que ultrapassem as categorias pragmáticas, quantitativas, já que este bem comum implica necessariamente uma concepção da pessoa humana, que não pode ser reduzida ou distorcida por uma racionalidade funcional ou utilitarista? Podemos mesmo afirmar que o Estado e a sociedade vivem de pressupostos que não podem fundamentar e garantir. Enquanto realidade neutra e secularizada, carece de um substrato religioso normativo que lhe confira um ethos específico. Deste modo, mesmo soberana, não mais pode ser considerada uma “sociedade perfeita”, pois para se fundamentar e subsistir depende de outros poderes e forças.

O relacionamento da Igreja com o Estado e a sociedade não mais se dá como no tempo da cristandade. O modelo que apela para concordatas e acordos conforme às necessidades, utilizado pela Igreja a partir da revolução francesa, tem suas vantagens por sua flexibilidade e desvantagens por sua labilidade, pois carece de princípios comuns estáveis. Outro modelo apresenta a Igreja como uma associação entre outras na sociedade pluralista, gozando de interesses próprios, e submetida como as outras à ordem jurídica do Estado. Este modelo não priva a Igreja de realizar sua missão, mas fracassa ao tentar vê-la como um subsistema na sociedade, já que ela visa à pessoa humana em todas as suas dimensões, não podendo assim ser confinada a um setor da sociedade. Ela não satisfará ao que dela espera a sociedade por considerar sua ação dependente de um princípio transcendente e por ter uma missão universal.

O melhor modelo deveria se basear na autonomia institucional da Igreja com base na liberdade religiosa. Mesmo que possa influir na sociedade e através da sociedade no Estado, deve se colocar como instituição diante do Estado. Pois sua vida e sua ação cobrem o setor religioso, situado fora da alçada do Estado, mas que, por outro lado, pertence à esfera vital dos cidadãos e repercute na ordem e na convivência social. Daí, ela deve se por diante do Estado como representante deste setor espiritual, embora sem poder externo algum. O princípio da liberdade religiosa oferece uma base normativa para este modelo. Ele permite que ela se organize e se estruture com autonomia, respeitando o pluralismo e a ordem jurídica, mas permitindo-a sair do setor privado e emergir no espaço público. Naturalmente os conflitos são inevitáveis, pois o Estado pode se orientar por princípios jurídicos que contradizem os valores cristãos, sendo que Igreja e Estado tendem a abranger, embora diversamente, todos os âmbitos da vida.

Embora distinta da sociedade e respeitando sua autonomia a Igreja desempenha uma importante função social. Pois a sociedade se apóia em princípios como a liberdade e a igualdade de direitos, ou o reconhecimento dos direitos humanos, que aí estão como realidades existentes ou postuladas. Mas nem a sociedade, nem o Estado, são capazes de oferecer a fundamentação dos mesmos. A Igreja pode, por ser competente em questões de sentido, embora sem exclusividade, ao lado da arte, da poesia, da filosofia, de outras religiões. De fato, há grande proximidade entre os postulados básicos (liberdade subjetiva, igualdade jurídica, dignidade humana, tolerância) e a fé cristã. “Na religião cristã emerge notavelmente o direito da subjetividade”, como observava Hegel em sua Filosofia do Direito. A fundamentação cristã se baseia na revelação (transcendência), não se apresenta como obrigatória por ser a sociedade pluralista e o Estado neutro, mas é uma oferta de sentido decisiva em nossos dias quando se constata o enfraquecimento do ethos da sociedade por não conseguir se fundamentar a si mesmo numa sociedade pluralista, ficando à mercê dos interesses de grupos dotados de poder e de dinheiro.

Outra função da Igreja na sociedade atual consiste na ajuda que fornece para a produção e fortalecimento de um consenso numa sociedade que deve reagir à força centrífuga do pluralismo. Pois a Igreja fornece concepções e atitudes fundamentais para o indivíduo e a sociedade, estabelecendo e fortificando elos sociais. Não é esta sua missão específica que pode pedir, em determinadas ocasiões, que atue como fator desintegrador de uma ordem social injusta, ou apenas insuficiente para a fé cristã, devido aos inevitáveis compromissos políticos. Daí também sua função crítica, já implícita na mensagem cristã, a qual a faz reagir sempre que se atenta contra a dignidade humana, a vida e a liberdade das pessoas. Esta função crítica, embora signifique um gesto também político, não pode ser tomada a serviço de um objetivo político-partidário.

Ao procurar esclarecer como a atividade da Igreja se desenrola no campo da política devemos distinguir já de início a atividade que compete à hierarquia eclesiástica da outra própria do laicato. Comecemos pela ação da hierarquia em face do Estado e da sociedade. Problema complexo que exige formas múltiplas conforme as circunstâncias. Princípio básico de todas elas é que a Igreja deve proclamar e levar a cabo na história a salvação oferecida na pessoa de Jesus Cristo. Tarefa religiosa e não propriamente política, já que não busca diretamente defender ou combater objetivos político-sociais ou partidários. Porém, como a mensagem de salvação se dirige ao ser humano que vive na sociedade, ela não deixa de ter uma repercussão no campo político, se entendemos político num sentido amplo, como o campo público das relações entre indivíduos e grupos na sociedade, abrangendo assim todos os setores da vida. Neste sentido tanto seria errado sonhar com uma atividade eclesial “pura” de todo contágio político, como igualmente pretender uma outra voltada diretamente para uma finalidade política. Apoiando-se sempre na mensagem evangélica que deve ser proclamada integralmente, independente de contextos políticos do momento, a Igreja respeita, por um lado, a autonomia do campo político e, por outro, permite que as conseqüências desta sua mensagem repercutam no setor político. Trata-se de uma “ação não-política política” da Igreja.

Deste modo emergem com mais clareza os critérios para as intervenções e pronunciamentos da hierarquia. Motivação básica dos mesmos é a própria mensagem cristã, quando inerente a uma questão política, em sua vertente ética. Em alguns casos se constata esta condição facilmente, em outros nem tanto, postulando da Igreja uma linguagem mais cautelosa ao oferecer subsídios e sem pretender fechar uma questão mais própria do setor político. Numa palavra a Igreja só deve intervir quando descobre a dimensão “metapolítica” de uma questão política. Neste sentido apoiar expressamente uma linha política ou um partido político demonstraria desconhecer seja a abertura, a pluralidade e a tensão interna da mensagem cristã, seja a multiplicidade de fatores que condicionam uma decisão política. Importante é sublinhar que a Igreja ao falar para o Estado e para a sociedade deve se fazer compreendida. Não bastam os argumentos provenientes da consciência cristã, já que soam como “subjetivos” numa sociedade secularizada. Eles devem, por isso, serem “traduzidos” de tal modo que a sociedade perceba na tomada de posição da hierarquia uma questão que é, no fundo, do seu próprio interesse. Hoje em dia todo discurso deve vir acompanhado de sua justificação, se quiser ser aceito nesta sociedade pluralista.

Do que foi observado, o âmbito de ação da hierarquia com relação ao Estado e à própria sociedade aparece mais limitado a temas litigantes ou à função de fundamentar e de criticar. Deste modo, nas sociedades democráticas se abre um espaço maior para os leigos, como cidadãos e como cristãos. A hierarquia não pode impor à sociedade (Estado) seus princípios cristãos, tarefa esta própria daqueles que devem entrar no processo político de formação de consenso, a saber, os cristãos enquanto cidadãos. Depois do Concílio Vaticano II ganham os leigos católicos uma autonomia na vasta missão salvífica da Igreja. Sua vocação é própria e específica: “procurar o Reino de Deus, exercendo funções temporais e ordenando-as segundo Deus” (LG 31). Neste sentido eles não estão situados depois ou abaixo do clero numa perspectiva hierárquica, porém mais propriamente ao lado do mesmo numa linha de divisão de tarefas.

A missão da Igreja é tarefa de todos, “embora de modos diversos”, sendo que nenhum membro deve se portar de modo meramente passivo (Decreto sobre o Apostolado dos Leigos 2). Vivendo no meio do mundo têm na política, na mídia, na ciência, na técnica, na cultura, na educação, na indústria e no trabalho seus campos de ação. Aqui a hierarquia não domina, mas indica, anima, convoca, orienta, deixando-os assumir as decisões práticas de modo livre, responsável, e dentro de sua própria competência. Deste modo os pronunciamentos do magistério ofereceriam as metas e os leigos se incumbiriam de concretizá-las. Num tempo de cristandade a hierarquia ocupava todo o espaço e era vista como a Igreja sem mais. Como vimos, daí resultou a proverbial passividade do laicato na atividade missionária da Igreja. Hoje a sociedade é pluralista, secularizada e muito mais complexa. Não se pode, e nem se deve mais, esperar da hierarquia pronunciamentos sobre todas as questões.

Os leigos podem influir politicamente na sociedade através de organizações propriamente católicas (partidos, sindicatos, outras associações), embora seja muito difícil manter seu perfil católico numa sociedade pluralista, já que sua eficácia em fermentar esta sociedade irá exigir cortes e restrições em seu programa, nivelando-as com outras organizações também presentes na sociedade. Além disso, a atual cultura tende a considerar as instituições confessionais apenas do ponto de vista utilitarista e pragmático, a saber, se são realmente eficazes não considerando seriamente o ideal que as anima. Os leigos podem influir também de dentro das organizações sociais já existentes, o que tem se revelado ainda mais problemático. Talvez a melhor saída seja a de grupos cristãos que se manifestem integralmente como tais, embora permaneçam sempre como minoria[10]. Como tal, eles estariam presentes na atual sociedade pluralista, que implica o diálogo, o confronto, a discussão de todos, embora diferentes, para se manter viva e progredir.

3. Igreja e sociedade brasileira

Naturalmente não podemos tratar esta temática em toda a sua extensão apenas em algumas páginas. A situação social, política, econômica e cultural da sociedade brasileira em toda a sua complexidade deveria ser confrontada com a realidade concreta da Igreja Católica no Brasil, em sua peculiaridade e, também em menor grau, em sua complexidade. Devemos, portanto escolher uma perspectiva particular que nos possibilite abordar a questão sem cairmos num estudo minucioso e demasiado extenso. Neste sentido optamos por examinar a dificuldade encontrada pela hierarquia em sensibilizar as classes melhor formadas do país para o seu discurso ético na área da política.

Pois o episcopado brasileiro é, sem dúvida, um dos mais sensíveis e ativos na luta por uma sociedade mais justa e fraterna. A abertura efetuada no Concílio Vaticano II com a Constituição Pastoral Gaudium et Spes e aplicada à América Latina pelas Assembléias do CELAM em Medellín, Puebla e Santo Domingo, e apoiadas nos últimos documentos da Doutrina Social da Igreja emanados por João Paulo II, foi seriamente acolhida pela CNBB através de muitos pronunciamentos e documentos, mesmo nos difíceis anos de repressão e censura. Não nos cabe aqui recordá-los, mas sabemos que alguns deles repercutiram fortemente no exterior inspirando e iluminando outras Igrejas. Ponto central dos mesmos era a situação dos mais pobres do país, sofrendo em sua impotência o peso esmagador de um sistema que privilegia sempre a produtividade e o lucro em prejuízo da pessoa humana.

Esta decidida e corajosa tomada de posição em favor das camadas populares foi acompanhada de iniciativas concretas que procuravam sensibilizar a população brasileira para as graves distorções presentes na sociedade, mas também que buscavam mobilizar as próprias classes mais excluídas para as imperiosas transformações sociais. Aí está o Movimento de Educação de Base criado em 1961, as Campanhas da Fraternidade, as Pastorais Sociais, o Mutirão Nacional de Superação da Miséria e da Fome, as Comissões Justiça e Paz, as Escolas de Fé e Política, as Comunidades Eclesiais de Base e, ultimamente, as Semanas Sociais.  Aí está a perseverante denúncia das violações dos direitos humanos, das condições desumanas de vida, das políticas neoliberais, das desiguais repartições dos recursos, da corrupção dos responsáveis em diversos níveis, que acabaram por provocar contra ela ataques indevidos por parte da mídia e dos grupos sociais mais poderosos.

Contudo, mesmo demonstrando ser um episcopado dos mais comprometidos com a justiça social, a Igreja do Brasil contempla consternada e indignada a sucessão de escândalos e o contínuo adiamento de uma política social que todos desejam. Daí nasce a pergunta: como explicar que o enorme esforço da hierarquia em favor dos mais excluídos não resultou em ações eficazes e transformadoras tão urgentes em nosso país? Não nos é difícil apontar na própria sociedade brasileira fatores de peso que obstaculizam qualquer tentativa de mudança do status quo. Temos uma democracia frágil, porque a maioria da população não apresenta um nível de educação que lhe permita ser agente consciente e significativo na construção da sociedade futura. Apesar dos investimentos feitos, dos movimentos populares existentes, das vitórias alcançadas aqui ou acolá a ameaça sombria do populismo paira ainda sobre nosso país. Podemos acrescentar ainda a complexidade de um país-continente e dos problemas que apresenta, o que dificulta muito o conhecimento básico das questões em jogo e conseqüentemente uma participação ativa no debate público. Os distritos eleitorais, municipais ou estaduais, tornam inviável um razoável conhecimento dos inúmeros candidatos por parte da população, favorecendo com isto a demagogia, as promessas eleitoreiras e a força onipotente da mídia para resolver eleições. Deste modo são guindados ao poder os assim chamados representantes do povo que não estão à altura dos desafios postos ao país e que apenas pensam em se enriquecer com tráfico de influência e desvio dos recursos públicos. Apenas mencionamos o prejuízo que causa a corrupção em nosso país, por ser tema constante do atual noticiário.

A Igreja conseguiu, ultimamente apoiada por outras Igrejas Cristãs, fazer chegar às camadas mais pobres, na zona rural do país, o seu discurso mobilizador. Aí estão as Comunidades Eclesiais de Base, que são uma configuração feliz e atual do que deve ser uma comunidade eclesial, com forte ênfase na comunhão e participação, e sem excluir a responsabilidade social e política do cristão diante da sociedade. Sabemos que muitos militantes políticos começaram em tais comunidades. Mas sabemos também da dificuldade de implantá-las na cidade ou entre a classe média, apesar do forte anseio por viver em comunidade, partilhando sua própria fé, que atinge hoje os católicos.

Do que vimos até aqui, certa apatia do católico diante da Política em seu sentido mais nobre provém da própria história de nosso país, não cabendo o ônus desta lacuna somente à Igreja. Vimos também que a esta última não compete propriamente uma ação diretamente política, mas, sobretudo de fundamentação do agir político e de vigilância ética deste agir[11]. De fato, numa sociedade pluralista a tolerância global acarreta uma forte erosão no ethos social, uma anarquia no sistema de valores, um relativismo sem fronteiras que dificultam seriamente a convivência humana[12]. Na ausência de uma fundamentação ética a sociedade se dobra diante dos ídolos atuais, como o individualismo, a produtividade, o lucro, gerando violência, corrupção e miséria social. Ou fica ao sabor das preferências da maioria quantitativa monitorada pela mídia, a saber, pelas classes dominantes.

Mas para desempenhar seu papel no espaço público deve a Igreja repensar o modo como proclama sua mensagem. Ao lado de uma preocupação no campo da moral da pessoa, de modo especial da moral sexual, deveria estar também uma ênfase mais forte no setor da moral social. Não se mata apenas pelo aborto, mas também pelo desvio dos recursos públicos destinados às camadas mais pobres. Vivemos numa sociedade democrática que se constrói a si mesma ao longo dos anos através da participação consciente e efetiva de seus cidadãos. Portanto, quem não participa, se omite; quem se omite, permite que esta construção fique à mercê de interesses e de grupos particulares que não visam ao bem comum, causando os malefícios que hoje experimentamos. Aqui não basta apenas uma ética de normas e leis, pois diante de uma realidade em contínua transformação faz-se mister despertar a consciência cristã para sua responsabilidade no setor político.

Outra conseqüência do que vimos diz respeito à formação de um laicato adulto que possa entrar no debate público oferecendo reflexões, estratégias e opções no campo político a partir da fé cristã. Já nos habituamos a esperar a intervenção imediata da hierarquia para qualquer problema que emerge na sociedade. Não se vê em nossos dias o papel do laicato na Igreja, tão enfatizado na Constituição Pastoral Gaudium et Spes. Para tal é necessário que os leigos gozem de liberdade para se expressarem, debaterem, sofrerem críticas de outros leigos, deixando assim que a questão abordada possa amadurecer, desvelar todas as suas dimensões e problemáticas, antes de ser objeto de atenção da hierarquia. Naturalmente o pluralismo reinante na sociedade irá se refletir neste debate intra-eclesial, já que não se pode deduzir diretamente do Evangelho uma determinada opção política, já que o mesmo apenas veta as políticas que atentam contra a dignidade humana.

Uma terceira conseqüência, intimamente ligada à precedente, concerne à formação cristã e política dos leigos. O peso do passado condiciona ainda hoje o católico médio. O catolicismo das devoções e procissões se aliou ao catolicismo do cristão que busca não cometer pecados para salvar sua alma. Ambos atingem todas as classes sociais, ambos se caracterizam pelo que poderíamos chamar de “individualismo religioso”, de cunho fortemente emotivo em nossos dias. A dimensão social da vocação cristã ficou reduzida ao âmbito das relações pessoais. A formação teológica do laicato já está experimentando um início promissor em nosso país. Ela deveria ser seguida de uma formação política, não apenas para as classes populares, como já se dá em alguns lugares, mas também para as camadas melhor formadas e, portanto, mais capacitadas a influírem nas urgentes e necessárias transformações sociais.

Se, por um lado, a Constituição Pastoral Gaudium et Spes atesta um gesto corajoso e inédito na história da Igreja, por outro, o seu texto nos deixa embaraçados, pois é ainda hoje uma riqueza não devidamente explorada e merecedora de maior atenção e valorização de nossa parte. Oxalá estas linhas possam contribuir para tal.

[1] Ver E.-W. BÖCKENFÖRDE, Staat-Gesellschaft-Kirche, em: Christlicher Glaube in moderner Gesellschaft. Teilband 15, Freiburg, 1982, p. 15-26.

[2] A. J. de ALMEIDA, Lumen Gentium. A transição necessária, S. Pauulo, 2005, pp. 161-177.

[3] B. LAMBERT, “La problématique génerale de la Constitution”, em: Y. CONGAR-M. PEUCHMAURD (ed.), L’ Église dans le monde de ce temps. Tome II, Paris, 1967, pp.146-148.

[4] B. LAMBERT, art. cit. p. 163.

[5] Y. CONGAR, “Le role de l´Église dans le monde de ce temps”, em: CONGAR-PEUCHMAURD (ed.), L´Église dans le monde de ce temps. Tome II, Paris, 1967, pp.313s.

[6] Para esta parte nos foi de grande ajuda o texto de R. TUCCI, “La vie de la communauté politique”, em: CONGAR-PEUCHMARD (ed.), ob. cit. II, p. 517-570.

[7] Citado por R. TUCCI, art. cit. p. 565 nota 60.

[8] Ver S. BERNAL, CNBB. Da Igreja da Cristandade à Igreja dos Pobres, S. Paulo, 1989, p. 59-63.

[9]  Ver BÖCKENFÖRDE, ob. cit. p. 46-52.

[10] C. BOFF, “Fé cristã e democracia”, em: F.R. BENTO (org.), Cristianismo, humanismo e democracia, S. Paulo, 2005, p. 100.

[11] “É verdade que a política e o econômico sem a moral podem lembrar o inferno”. G. LIPOVETSKY, Metamorfoses da cultura liberal, Porto Alegre, 2004, p. 39.

[12] J. RATZINGER, Chiesa, Ecumenismo e Política, Torino, 1987, p.202s.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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